domingo, 29 de maio de 2011

Ensinamento: "gentileza gera gentileza"



perdeu a mão
para a escrita

não obtém bom verso
nem mesmo pobre rima

é que só sabe
sentimento

aquela palavra de luxo...


Hercília Fernandes

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".

Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo.


Adélia Prado,
In Ensinamento




Vive-se uma época de retrocesso à barbárie. As bandeiras e os instrumentos de guerra, no entanto, já não são os velhos e encardidos panos, nem as espadas grotescas e as armaduras enferrujadas sobre/sob cavalos altivos...
Aprimoram-se os discursos, inventaram ideias, falsearam a realidade: “apagaram tudo, pintaram tudo de cinza”...
A palavra, outrora vinda para esclarecer os homens, tornou-se objeto de manipulação, exercício de poder e de saber. O amor, sentimento humano maior, constituiu-se objeto de riso, siso, fabulação...
E, nesse palco de dominação, anjos rebeldes são postos ao fogo, crianças e idosos jogados às próprias sortes. Mulheres violentadas, silenciadas e mutiladas em seus desígnios. Humanos morrem a cada dia e mortos-vivos enfeitam cenários; e, autômatos, enredam cenas reais nessa grande comédia da vida moderna.
Todavia, o palco não é mais o “bem perdido”, o locus amoenus redentor, élan vital capaz de oferecer luz às ideias. O palco, composto por “flores de cimento”, não configura a natureza idílica gritante, mas as pedras cuidadosamente emparelhadas, ornamentalmente bem elaboradas...
Compõem-se as cores da cidade: tons opacos, nublados, acinzentados; mãos e sinais fechados, olhos empoeirados... Cenário rude, pobre, nefasto!
E nesse teatro mortificado surge, então, o fogo; e, com ele, a devassidão, a claridade e a normalização... Entretanto, não é o fogo o temível vilão! Não é o fogo o terrível atroz da multidão!...
O fogo deixa rastros pela cidade e, com as nuvens de fumaça, vem acordar a criatura humana da sua rudeza e automatização. E em meio a desolação, um homem se levanta e grita à multidão: o MAL reside no coração!
Um homem - "com a sua dor estampada na cara" - entra em cena nesse “circo” de horrores. E, nele, recolhe doentes, expande sonhos, alimenta crianças, velhos, “lobos” e “dementes”...
Um homem com a sua dor, com a dor escancarada na longa barba, grita: só existe um caminho, o caminho é o amor!...
Mas as pessoas estão por demais ocupadas para receberem o pão na farta mesa. Seus corações, presos no cimento e no vazio, ignoram “palavras de Gentileza”. E não percebem quantas cores podem existir no mundo, na natureza, recusando-se à frase: “Gentileza Gera Gentileza”!
E, mesmo com a sua tamanha e gentil Gentileza, o circo continua pegando fogo e as pessoas que, “apressadas passam pelas ruas da cidade”, caminham silenciadas por intermináveis círculos de escuridão, posto que: “a palavra no muro fora coberta de tinta"...
O homem, com a sua dor, é afastado da cega e homogênea multidão, tiram-lhes a mobilidade do estandarte e os instrumentos de luta; tiram-lhes, da palavra, a trindade redentora: “amorrr”.
Amor escrito com o “R” do Pai, com o “R” do Filho e com o “R” do Espírito Santo. E o circo novamente invade a cidade e expande-se pela escola, e a escola rouba a vida e o tom cinza pinta negritudes nos corações.
Porém, a “gentileza que Gentileza gera” insiste em resistir e, em meio às flores de cimento, o profeta - louco, poeta, menino - indaga os mortos-vivos e deixa o questionamento como herança:
- “Qual o mais importante: o livro ou a sabedoria?
Amor, palavra que liberta, já dizia o Profeta!”

Eis, aí, a gentileza na sofia do Messias!...

Hercília Fernandes



*Textos elaborados em processos de “intersubjetividade” com Adélia Prado, Marisa Monte, Zélia Duncan e tantos outros Outros...
*Imagens disponíveis na Internet.

2 comentários:

  1. Hercília


    Lindo, verdadeiro e muito bem escrito (como sempre) este post!


    Quanto tempo perdido com tantos "TER" se é nas coisinhas miúdas do "SER" que residem o "luxo" da vida! Que esta sentimentinha de gentilieza germine em todos os homens, para que colhê-la seja a regra e não a exceção!


    Bjs, minha amiga

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  2. Maravilha, Hercilia!

    Eu adorava o Profeta Gentileza. O que você escreveu está realmente acontecendo no mundo. Que pena essa perda de valores, essas almas cimentadas, sem emoção para nada. Tomara que mais se unam ao seu grito, para que tenhamos pelo menos um pouco de esperança.

    Beijos

    Mirze

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