sábado, 8 de novembro de 2008

Crônica: NO DIVÃ DO JÔ



Em 14 de janeiro de 2007 postei no blog HF diante do espelho uma crônica que funde sonho e realidade para apresentar situações hipotéticas acerca de um possível encontro com o Dr. Freud, melhor dizendo, com o Jô Soares.
No texto - na época intitulei de “No divã do Jô” - realizo uma viagem onírica pelas linhas gerais do Programa do Jô; narrando possíveis experiências e vieses discursivos de uma entrevista. Na ocasião da escrita, encontrava-me elaborando as categorias de análise de minha pesquisa, já então concluída no Mestrado em Educação, acerca de Cecília Meireles e o seu lirismo pedagógico na Literatura Infantil.
Hoje, fazendo uma releitura da crônica, percebo que muitas dessas primeiras impressões puderam ser investigadas e que o poeta e/ou pesquisador das ciências sociais através do “devaneio poético” - como diria Gaston Bachelard: “acordado” - pode vislumbrar, fenomenologicamente, os motivos de sua inquietação e os enigmas que configuram a sua busca.
Além do exposto, a escrita realiza uma espécie de autobiografia, apresentando a multiplicidade de gênios existente em minha personalidade, os campos de interesse e o élan vital capaz de unir pólos aparentemente opostos.
Creio que muitos autores e intelectuais aspiram a oportunidade de entrevista no Programa do Jô. É que o “direito de sonhar”, parafraseando o título de um dos livros de Bachelard, é pertinente ao artista. E, mesmo que o devaneio não se concretize efetivamente, o poeta materializa o onírico em linguagem através da sua fortuna imaginativa, apontando caminhos futuros. Pois, lembremos a célebre frase de Jean Lescure: “O artista não cria como vive, vive como ele cria”.
Passemos, então, a um dos meus devaneios:

Por Hercília Fernandes

Esses dias, não recordo exatamente quando, tive um sonho bastante hilário e ambicioso. Ao dormir, altas horas da madrugada, vislumbrei-me em um divã, cujo psicanalista se constituía a imagem transfigurada do Dr. Freud, o Jô Soares.
Imagine o leitor: o Jô Soares!
Digo que o sonho fora espirituoso, não por conter situações cômicas, trágicas e/ou patológicas – pois, de fato, sequer lembro as passagens... Mas, porque, desde o ocorrido, trago o desejo atrevido de me sentar numa certa cadeira..., que a chamo, afetuosamente, de divã, e deixar-me embalar, aos apelos dos olhos e dos ouvidos, ao som inebriante do Sexteto, as peripécias do Jô analista e aos olhares atenciosos da platéia – nem mesmo o Alex escapa de tais devaneios...
Como sonhar não é pecado e, talvez, um dos únicos direitos assegurados de um ser, possuidor de talento especial, ou não, passei a imaginar tal situação. Tentarei narrar, aqui, as loucuras que fomentam minha fronte desde então.
Bem... acredito que todos, de alguma forma, sonham em um dia experimentar aos sabores do Jô: artistas, intelectuais, profissionais liberais, cientistas normais ou anormais... Enfim, toda uma gama de ismos almeja um dia, ou, melhor, noite, ter a oportunidade de passar pela lente e/ou pente do Dr. Jô Soares, e expor os pensamentos, convicções, sentimentos...
No meu caso, várias questões me tomam a mente: O que teria a dizer em seu programa? Falaria o quê, para quê e para quem? Ou, melhor, qual das minhas personas deveria mostrar-se no enleio? A poeta, a professora-pedagoga, a pesquisadora?
Assisto ao seu programa de entrevista desde a época do “Jô Onze e Meia”, e percebo que os entrevistados debatem sobre diversas situações; porém, sempre as voltas de um tema específico que se entrecruza com outras realidades. Desse modo, qual especificidade poderia, eu, tratar em seu divã?
Antes, quero deixar claro ao leitor que minha intenção, aqui, não é fazer uma suposta promoção, nem também fazer deste maluco relato, motivo de espanto ou indignação - apesar de que, se o leitor assim o quiser, poderá rir do calor de minha exposição. Como falei anteriormente mesmo os dementes têm direito aos sonhos. E, quanto a mim, nos sonhos posso tudo! Inclusive ter o Jô Soares como psicanalista freudiano!
Mas, para não perder de vista o ânimo nem a entrevista, voltemos à narrativa!...
Bem, depois de muito refletir sobre a minha suposta especificidade, pensei o seguinte: Falaria, ao Jô, sobre “lirismo”. De como o lirismo age na minha vida pessoal, literária, profissional. O lirismo, basicamente, se constitui o ponto “G” da minha questão, o elo comum a tantas polivalências, e forma, em mim, uma sincronia e unicidade.
Todavia, surge propriamente a indagação: A quem interessaria tal enunciação? Penso que aos artesãos da alma; aos que ainda sentem, dentro, vibrar um coração. Porque lirismo é o avesso do tédio, da coisificação, da pasmaria, da redundância... Lirismo é reticência, é insubordinação.
Nesse caso, tal ilustração seria lustre aos que desejam uma mudança essencial na educação, como quisera Cecília Meireles (1901-1964) ao pronunciar uma “Lírica Pedagógica” às crianças, cuja obra poética infantil une, simultaneamente, natureza lúdica e pragmatismo.
Sendo o lirismo o motivo da consulta no Jô, contar-lhe-ia o meu envolvimento com a poesia, desde a formação da parceria com o músico e compositor Marcus Vinícius até esses dias[2]. Recitar-lhe-ia versos em alta dosagem de expressividade. Falar-lhe-ia dos meus livros lançados sem editora, entretanto, com apoio cultural do SESC-RN. Falar-lhe-ia dos estudos oferecidos aos educadores da rede pública de ensino sobre poesia e imaginário infantil, e a relevância dessa linguagem e do desenvolver dessa faculdade às crianças e às práticas pedagógicas.
Contar-lhe-ia sobre a minha pesquisa: O Lirismo Pedagógico em Cecília Meireles, no Mestrado em Educação (PPGED-UFRN/Natal), que conta com a preciosa orientação do Prof. Dr. Antônio Basílio N. T. de Menezes. E, sobre o meu abraço à causa nobre da poeta-pedagoga: a de levar à educação e à ciência pedagógica:

[...] um sopro sentimental, que a aproxime da vida quando apenas começa; desse lirismo que os homens, com o correr do tempo, ou perdem, ou escondem, cautelosos e envergonhados, como se o nosso destino não fosse o sermos humanos, mas práticos (MEIRELES, 1984, p. 30)[3].

[Mais...]
Como considero a cadeira do Jô um divã, falar-lhe-ia também da minha timidez – acho que resultante do excesso de lirismo... Todavia, brincar-lhe-ia: Sou tímida, porém falante! Entretanto, depois de pedir-lhe licença, solicitaria ao maestro Osmar uma música envolvente - quem sabe lírica? - a fim de afastar o nervoso da estréia. E, ao Alex, um daqueles exuberantes coquetéis de fruta.
Ao Jô Soares, por fim, agradeceria a oportunidade e contar-lhe-ia, passo a passo, esse devaneio; que, aliás, de hilário só o vislumbre da cadeira do Jô como peça idílica do consultório do Dr. Freud!
E você, leitor, já se imaginou em tal situação? Pense nisso...

Notas:

[1] Crônica publicada no blog HF diante do espelho, em 14 de Janeiro de 2007, pela Profa. Ms. em Educação Hercília Fernandes. Para visitar a primeira postagem do texto e ler os comentários dos visitantes, clique no link: http://fernandeshercilia.blogspot.com/2007/01/no-div-do-j.html
[2] Para conhecer algumas das canções de Hercília Fernandes e Marcus Vinícius visite a página do My Space:
http://profile.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendid=419565768
[3] MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3. ed. São Paulo: Summus, 1984.

Algumas referências de Gaston Bachelard:

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: ______. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978, p. 181-354.
______. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Párdua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
______. O direito de sonhar. Trad. José Américo Motta Pessanha et al. São Paulo: DIFEL, 1985.

Indicações de leitura:

A Lírica pedagógica de Cecília Meireles em 'Ou isto ou aquilo' (1964): instrução e divertimento. Artigo publicado em www.artigos.com/ Disponível em: http://www.artigos.com/artigos/humanas/educacao/a-lirica-pedagogica-de-cecilia-meireles-em-%93ou-isto-ou-aquilo%94-%281964%29:-instrucao-e-divertimento-2056/artigo/
O Lirismo Pedagógico em Cecília Meireles: “Quem fica no chão não sobe nos ares”. Disponível em: http://www.artigos.com/artigos/humanas/educacao/o-lirismo-pedagogico-em-cecilia-meireles:-%93quem-fica-no-chao-nao-sobe-nos-ares%94...-2821/artigo/

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Outras Vozes: contribuições da blogosfera


O Novidades & Velharias, buscando favorecer a troca de saberes, experiências e poéticas, lança um novo quadro de postagens através da publicação de escritas fornecidas por autores / leitores que acompanham o blog regularmente.
O quadro, intitulado “Outras Vozes: contribuições da Blogosfera[1]”, traz como matéria de abertura um artigo da professora e poetisa Taninha Nascimento, postado em seu espaço virtual No rastro da poesia, que disserta, poética e filosoficamente, sobre a dialética “Silêncio e Voz”.
Além de expor suas impressões e idéias acerca da comunicação na atualidade, a autora contextualiza a sua comovente fala, realizando uma espécie de intersubjetividade poética e/ou intertextualidade com o poema "Eppur si muove" de Affonso Romano de Santana. Passemos para a prosa subjetiva da Taninha Nascimento:
Por Taninha Nascimento

Silêncio e voz são temas recorrentes em canções, poesias e prosas. Na arte e na vida experimentamos vivê-los. Entretanto, nem sempre paramos e refletimos sobre as circunstâncias que os envolvem, sobretudo nas crises. Silenciamos ou, usamos o verbo, sem medirmos ou nos darmos conta das conseqüências deste ou daquele - tanto para a nossa própria história, quanto para a história dos que nos cercam e até da Humanidade.
Quem apaga uma palavra dita? Quem revive o momento para dizer o que não foi dito? Silêncio e voz parecem viver em eterno conflito quando ambos, na verdade, são meios poderosos de comunicação.
O silêncio é - sempre - mais perturbador, claro. No silêncio mora a dúvida, a incerteza. Aquilo "que se pensa e não é dito"... Contudo, quem garante a veracidade das palavras faladas, ou ainda, escritas?
Pois é... Na comunicação perpassam sons, silêncios, palavras, símbolos, gestos... O nosso próprio corpo, que fala.
Na história da humanidade, tudo gira em torno da comunicação.
A comunicação, pra mim, é sinônimo de relacionamento. No sentido mais abrangente que possa haver na palavra.
Alguém se relaciona sem se comunicar? Sim, os tiranos... Somente na tirania há este tipo de "relação". Mas, ainda assim, em resposta, há toda uma expressão que se manifesta na "voz" daquele que a ela está submetido - ainda que se cale.
Triste é uma existência onde não houve – jamais – comunicação. Algo que me parece, inclusive, impossível.
Tudo o que eu disse é tão óbvio... (Risos...). Mas será tão fácil? Não... Não me parece fácil quando penso que, para haver comunicação, é preciso haver sensibilidade. Para haver comunicação, é preciso "ouvir". Saber "ouvir" é fácil? Não! Claro que não é... Saber ouvir é analisar. Analisar demanda tempo e dedicação. Simplificando: atenção.
Atualmente, difícil se ter a atenção de alguém... Difícil se dar atenção a alguém...
Quando penso que, nem sempre, comunicação significa verdade e justiça. E, quando penso que na comunicação precisa haver, ainda, humildade e compaixão... Sim, compaixão: "Se colocar no lugar de"...
Nossa...Que difícil...
Sim. Definitivamente, a comunicação, é o que há de mais complicado nas relações humanas. Onde pode haver progresso ou estagnação; vida ou morte. Ou ainda, morte em vida.
A verdade é que a "voz humana", seja ela escrita, falada, cantada, pintada, esculpida ou ainda silenciada ecoará sempre nos "ouvidos" sensíveis a ela. Estes, a "ouvirão" e a perpetuarão.
A Arte e a História comprovam.
Nesta mesma linha de pensamento, me remeto a um poema, ou prosa poética, que recebi e que me encantou esta semana:


Eppur si Muove[2]

Não se pode calar um homem.
Tirem-lhe a voz, restará o nome.
Tirem-lhe o nome
e em nossa boca restará
a sua antiga fome.

Matar, sim, se pode.
Se pode matar um homem.
Mas sua voz, como os peixes,
nada contra a corrente
a procriar verdades novas
na direção contrária à foz.

Mente quem fala que quem cala consente.
Quem cala, às vezes, re-sente.
Por trás dos muros dos dentes,
edifica-se um discurso transparente.

Um homem não se cala
com um tiro ou mordaça.
A ameaça
só faz falar nele
o que nele está latente.

Ninguém cala ninguém,
pois existe o inconsciente.
Só se deixa enganar assim
quem age medievalmente.
Como se faz para calar o vento
quando ele sopra
com a força do pensamento?

Não se pode cassar a palavra a um homem,
como se caçam às feras o pêlo e o chifre
na emboscada das savanas.

Não se pode, como a um pássaro,
aprisionar a voz humana
A gaiola só é prisão
para quem não entende
a liberdade do não.

Se a palavra é uma chave,
que fala de prisão, o silêncio
é uma ave- que canta na escuridão.

A ausência da voz
é, mesmo assim, um discurso.
É um rio vazio, cujas margens sem água
dão notícia de seu curso.

No princípio era o Verbo-
bem se pode interpretar:
no princípio era o Verbo
e o Verbo do silêncio
só fazia verberar.

Na verdade, na verdade vos digo:
mais perturbador que a fala do sábio
é seu sábio silêncio,
con-sentido.

O que fazer de um discurso interrompido?
Hibernou? Secou na boca, contido?
Ah, o silêncio é um discurso invertido,
modo de falar alto- o proibido.

O silêncio
depois da fala
não é mais inteiro.
Passa a ter duplo sentido.
É como o fruto proibido, comido
não pela boca,
mas pela fome do ouvido.

Se um silêncio é demais,
quando é de dois, geminado,
mais que silêncio- é perigo,
é uma forma de ruído.

Por isso que o silêncio
da consciência,
quando passa a ser ouvido
não é silêncio-
É estampido.

Notas:


[1] Os interessados em contribuir com o quadro "Outras Vozes" poderão entrar em contato com Hercília Fernandes através do e-mail: fernandeshercilia@yahoo.com.br (Nota da editora).
[2] Eppur si muove: Texto de Affonso Romano de Santana para Leonardo e Clodovis Boff. "Ainda assim, ela se move" - Frase dita por Galileu, após abjurar (diante da Inquisição) que o planeta Terra girava em torno do sol (Nota da autora).

Breve Biografia:


Taninha Nascimento é professora efetiva no quadro funcional da Secretaria Municipal de Educação do RJ. Possui Bacharelado em Letras-Português/Literatura e, atualmente, atua como Coordenadora Pedagógica. E-mail da autora: taninha_anjinha@hotmail.com