domingo, 14 de junho de 2009

Outras vozes: contribuições da Blogosfera (2)


O professor e pesquisador Jayme Bueno, com a sensibilidade e sabedoria que lhes são próprias, enviou-me, há algum tempo atrás, um belíssimo artigo sobre “a imagem do espelho na literatura”. Em correspondência de e-mail, datada de 20 abril de 2009, o ilustre estudioso alude:


Prezada Hercília Fernandes,

Motivado pelo título de seu blog HF DIANTE DO ESPELHO, resolvi buscar informações e alguns poetas mais conhecidos que trabalharam o tema espelho em seus poemas.


O artigo comporta algumas definições sobre o fenômeno do espelho na literatura, particularmente na poesia, apresentando análises conceituais de teóricos como Bachelard, Humberto Eco e Winnicott. Além disso, o prof. Jayme desenvolve a temática a partir de obras e fragmentos literários de grandes nomes da literatura universal e contemporânea, destacando o tema em Shakespeare, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Mario Quintana, dentre outros.

E, encerra o artigo com uma belíssima obra em prosa de Érico Veríssimo, onde o autor proclama que: “O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear” (VERÍSSIMO, in: Solo de Clarineta).

Passemos, então, aos espelhos poéticos contemplados pelo excelentíssimo prof. Jayme Bueno.



DIANTE DO ESPELHO


Por Jayme Bueno


Estar à frente de um espelho e mirar-se nele faz parte do inconsciente coletivo. Essa fixação sobre a imagem no espelho provém, como quase tudo na literatura, das lendas gregas. Neste caso, ela deriva em especial da lenda de Narciso poetizada pelo poeta latino Ovídio nas Metamorfoses. Narciso, enlevado por sua própria beleza, ia olhar-se todo dia nas águas de um lago. Era o desejo de conhecer-se que o atraía e o deleitava.

Todos nós mortais queremos conhecer-nos a nós mesmo. Somos todos personalistas, todos encantados conosco mesmos. De certa forma, seguimos o preceito de Sócrates; conhece-te a ti mesmo. Com certeza, porém, ele não acrescentou: enleva-te com a sua própria imagem. A Sócrates, filósofo como era, preocupava o conhecimento interior a essência do ser, e não a beleza da imagem, que é algo exterior e passageira.

Veio, então, essa verdadeira fixação à imagem que aparece no espelho, que, em tempo, já não lendários, substituiu as águas do lago. Para Bachelard, segundo Cássia Helena Barbosa José e Adilson José Ruiz, em Diálogo com Narciso: uma interpretação plástica de Bachelard: O espelho (...) é demasiadamente civilizado e geométrico. Quando Narciso se depara com sua imagem refletida em um lago, ele encontra na água um campo aberto para uma experiência íntima de beleza.

Para Clarice Lispector, em Água Viva, p. 79: ... Espelho é luz. Um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo. (...) É coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto.... O espelho, portanto inspira sonho e devaneio. Ele representa a profundeza que se mostra a um poeta.

É necessário que, como Umberto Eco, Sobre os espelhos e outros ensaios, tenhamos a necessária consciência de que não somos nós que estamos dentro do espelho, mas a nossa imagem, que lá inclusive aparece distorcida: o relógio do pulso esquerdo aparece no direito: O espelho reflecte a direita exactamente onde está a direita e a esquerda onde está a esquerda. É o observador (ingénuo, mesmo quando faz de físico) que por identificação imagina que é o homem dentro do espelho e, vendo-se, se dá conta de que traz, por exemplo, o relógio no pulso direito. Mas o facto é que só o traria se ele, o observador, fosse aquele que está dentro do espelho (Je est un autre).

O psicólogo Winnicott, da linha lacaniana, foi outro a quem o tema interessou, em Mirror-role of mother and family in child development (O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil), no capítulo IX - O Brincar e a Realidade, p. 131 -, escreveu: O que faz o bebê quando ele ou ela olham a face da mãe? Eu sugiro que, geralmente, o que o bebê vê é a ele mesmo. Winnicott vê, portanto, as nossas mães como as precursoras de nossos espelhos.

Para Tomás Baêna, que se baseia em Bachelard e em Winnicott: O espelho (do latim speculum) exerceu desde sempre um grande fascínio sobre o espírito humano, pois gera um espaço de ambiguidade: a imagem que reflecte é simultaneamente idêntica (ainda que invertida) e ilusória. O espelho assume, assim, sentidos radicalmente opostos: representa a verdade (símbolo mariano) e a aparência (símbolo demoníaco).

Segundo ainda Tomás Baêna, a crítica de Platão (427-347 a. C.) sobre o simulacro assenta precisamente nesta relação entre o objecto real e o seu enganador reflexo. Inscrito no campo animado da experiência e da actividade psíquica, o espelho veicula o sentido de verdade equívoca, sendo considerado o símbolo por excelência do Simbolismo (Michaud, 1949). Nesta medida, assume uma função estética de destaque em todos os campos artísticos.

Após este breve, embora longo excurso, vamos ver como diferentes poetas e prosadores reproduziram em suas obras a imagem do espelho:




RETRATO

Cecília Meireles


Eu não tinha este rosto de hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro,

Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo.


Eu não tinha estas mãos sem força,

Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

Que nem se mostra.


Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida

A minha face?



Fragmento de PROCURA DA POESIA

Carlos Drummond de Andrade


Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.



VERSOS DE NATAL

Manuel Bandeira


Espelho, amigo verdadeiro,

Tu refletes as minhas rugas,

Os meus cabelos brancos,

Os meus olhos míopes e cansados.

Espelho, amigo verdadeiro,

Mestre do realismo exato e minucioso,

Obrigado, obrigado!


Mas se fosses mágico,

Penetrarias até o fundo desse homem triste,

Descobririas o menino que sustenta esse homem,

O menino que não quer morrer,

Que não morrerá senão comigo,

O menino que todos os anos na véspera do Natal

Pensa ainda em pôr os seus sapatinhos atrás da porta.



O ESPELHO

Mario Quintana


E como eu passasse por diante do espelho

não vi meu quarto com as suas estantes
nem este meu rosto

onde escorre o tempo.


Vi primeiro uns retratos na parede:

janelas onde olham avós hirsutos

e as vovozinhas de saia-balão

Como pára-quedistas às avessas que subissem do fundo do tempo.


O relógio marcava a hora

mas não dizia o dia. O Tempo,

desconcertado,

estava parado.


Sim, estava parado

Em cima do telhado...

Como um catavento que perdeu as asas!



RETRATO ANTIGO - do livro Viagem no Espelho

Helena Kolody


Quem é essa

quem me olha

de tão longe,

com olhos que foram meus?



RETRATO

Lila Ripoll


Chego junto do espelho, olho meu rosto.

Retrato de uma moça sem beleza.

Dois grandes olhos tristes de agosto,

olhando para tudo com tristeza.


Pequeno rosto oval. Lábios fechados

Pra não revelar o meu segredo...

Os cabelos mostrando, sem cuidados,

Uns fios brancos que chegaram cedo.[...]


Meu retrato. Eis aí: Bem igualzinho.

O espelho é meu amigo. Nunca mente.

No meu quarto, ele é o móvel mais velhinho.

E sabe desde quando estou descrente!...



O ESPELHO

Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa


O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.

Pensar é essencialmente errar.

Errar é essencialmente estar cego e surdo.



Uma estrofe do poema FOLHAS DE ROSA

Florbela Espanca


O espelho de prata cinzelada,

A doce oferta que eu amava tanto,

Que reflectia outrora tantos risos,

E agora reflecte apenas pranto



O ESPELHO DO GUARDA-ROUPA – Parte III

Ferreira Gullar


Carregar um espelho

é mais desconforto que vantagem:

a gente se fere nele

e ele

não nos devolve mais do que a paisagem

Não nos devolve o que ele não reteve:

o vento nas copas

o ladrar dos cães

a conversa na sala

barulhos

sem os quais

não haveria tardes nem manhãs



POEMA 22

João Manuel Simões


Estilhacei o espelho

a pontapés

pensando destruir

a própria imagem.

(E era eu que habitava

além do espelho.)

Por isso em cada caco

habita agora

um pedaço de mim,

esquartejado.



AL ESPEJO

Jorge Luis Borges



¿Por qué persistes, incesante espejo?

¿Por qué duplicas, misterioso hermano,

el movimiento de mi mano?

¿Por qué en la sombra el súbito reflejo?


Eres el otro yo de que habla el griego

y acechas desde siempre. En la tersura

del agua incierta o del cristal que dura

me buscas y es inútil estar ciego.


El hecho de no verte y de saberte

te agrega horror, cosa de magia que osas

multiplicar la cifra de las cosas


que somos y que abarcan nuestra suerte.

Cuando esté muerto, copiarás a otro

y luego a otro, a otro, a otro, a otro…



ESPELHO DE UM MOMENTO

Paul Éluard, postado por Carlos Machado


Ele dissipa a claridade

Mostra aos homens as imagens sutis da aparência

Arrebata aos homens a possibilidade de se distraírem.

É duro quanto a pedra,

A pedra informe,

A pedra do movimento e da rua,

E seu brilho é tal que todas as armaduras, todas as

máscaras se deformam.

O que a mão tomou desdenha mesmo de tomar a forma da mão.

O que foi compreendido não existe mais,

A ave se confundiu com o vento,

O céu com sua verdade

O homem com sua realidade.



SONETO INGLÊS

Shakespeare, trad. Ivo Barroso


O espelho não me prova que envelheço

Enquanto andares par com a mocidade;

Mas se de rugas vir teu rosto impresso,

Já sei que a Morte a minha vida invade.


Pois toda essa beleza que te veste

Vem de meu coração, que é teu espelho;

O meu vive em teu peito, e o teu me deste:

Por isso como posso ser mais velho?


Portanto, amor, tenhas de ti cuidado

Que eu, não por mim, antes por ti, terei;

Levar teu coração, tão desvelado


Qual ama guarda o doce infante, eu hei.

E nem penses em volta, morto o meu,

Pois para sempre é que me deste o teu.



ESPELHO

Sylvia Plath, trad. postada por Beatriz Galvão


Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.

Tudo o que vejo engulo no mesmo momento

Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.

Não sou cruel, apenas verdadeiro —

O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.

O tempo todo medito do outro lado da parede.

Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele

Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.

Escuridão e faces nos separam mais e mais.


Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,

Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.

Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.

Vejo suas costas, e a reflito fielmente.

Me retribui com lágrimas e acenos.

Sou importante para ela. Ela vai e vem.

A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.

Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha

Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.



Para concluir, segue a voz de um grande prosador, Érico Veríssimo: Solo de Clarineta - Livro de memórias – Texto prefácio:



O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado - e às vezes, inexplicavelmente, do futuro - enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz ou pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa freqüência entramos em conflito. Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável. "Os cabelos te fogem, homem" - murmuro-lhe às vezes - "Tuas carnes se tornas flácidas. Vejo a escrita do tempo no pergaminho do teu rosto". - "E como imaginas que estás?" - replica o meu reflexo. Acabamos consolando-nos mutuamente com a idéia de que conservamos a mocidade de espírito. Mas até onde isso é verdade? Encolhemos os ombros e passamos a outras considerações e devaneios, enquanto o barbeador elétrico zumbe, e o incansável calígrafo invisível continua no seu sutil trabalho de amanuense da Morte.

No Homem do Espelho reconheço os olhos escuros e me­lancólicos de minha mãe. Essa cabeçorra, quase desproporcional ao resto do corpo, herdei-a de meu pai. Quanto à pele morena, talvez me tenha vindo de algum remoto antepassado índio ou mouro. As sobrancelhas negras e espessas - que passaram a vida no vão esforço de dar a essa cara um ar façanhudo, de­certo com o propósito de atenuar a mansuetude quase humilde dos olhos - foram suavizadas pela prata com que o tempo as retocou. (Prata ou cinza?)

Eu gostaria de simplificar o problema de meu "tempera­mento", apresentando-me como a manifestação duma dicoto­mia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe ­sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade - podem ser comparadas com os muros duma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insi­diosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, auto-in­dulgência/ inclinação para o ócio e para uma espécie de hedo­nismo irresponsável.

"Mas a coisa não é assim tão simples e nítida'.! - observa o Outro. - Eu sei, eu sei" - respondo em pensamentos ­"mas vamos adiante, companheiro. É pelos sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da ver­dade."

O Fantasma foca em mim os seus olhos secretamente cé­ticos e murmura: "Será que esse reino existe mesmo fora da mitologia?". Ambos encolhemos os ombros.



Breve biografia de Jayme Bueno:




Jayme Bueno é professor universitário e estudioso em literatura. É autor de vários livros sobre a literatura portuguesa, destacando-se: Távola Redonda: uma experiência lírica (1983) e Aspectos da Poética de António Gedeão (1979). Dispõe de vasta participação em congressos de literatura, cuja recente explanação se desenvolveu a partir do tema Padre António Vieira, Escritor e Diplomata, em agosto de 2008, no IX Congresso AIL (Associação Internacional de Lusitanistas), na Universidade da Madeira, em Funchal-Portugal. Contatos com o autor: Blog do Jayme Bueno.