terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Poesia para crianças?... o lúdico na Blogosfera


Há poemas que não tematizam o universo infanto-juvenil, não expressam as singularidades da infância e a pluralidade sócio-cultural existente no cotidiano das crianças: seja nas ruas, nas favelas, nas escolas, nas cirandas... porém, são verdadeiros brincos sonoros, estilísticos e semânticos.

São textos lúdicos, pois brincam com os sons, as palavras, os ritmos, as pausas, os sentidos... propondo desafios de construção semântica aos leitores. Parecem até nos dizer em um frenético trem, bolha de sabão, arco-íris ou treme-treme que “poesia é brincar com palavras”, como poetiza o autor brinquedista José Paulo Paes.

Esses poemas, no entanto, apesar de lúdicos, ou conterem “elementos lúdicos”, conforme teorização de Huizinga em o Homo Ludens (2000), trabalham com sérias questões e problemáticas, sejam elas conceituais, emotivo-sentimentais, reflexivas, míticas e/ou metafísicas; podendo, portanto, serem considerados “jogos” para o entretenimento, à reflexão e à produção do conhecimento do leitor adulto[1].

Atendendo a essas considerações iniciais, o Novidades & Velharias reúne, nesta postagem, poemas com características lúdicas que propõem desafios e jogos de significação aos leitores e se destacam pela dinamicidade rítmica, adoção de uma linguagem enriquecida em aliterações, diminutivos, onomatopéias, rimas e imagens oníricas ligadas a animais. A simplicidade da linguagem e o uso de recursos lúdicos, no entanto, não enganam o olhar atento adulto, já que os textos desenvolvem temáticas profundas, apresentando ricas contextualizações, sentidos e combinações complexas.

Assim, para composição desta seleta, o Novidades & Velharias apresenta cinco textos[2], de quatro poetas que, abundantemente, se destacam dentro e fora da Web com criações lúdicas dirigidas, também, ao leitor experiente, quais sejam: Fernando Cisco Zappa, Fred Mattos, Lau Siqueira e Marcelo Novaes.

Passemos para estes brincos confeccionados para olhos, mãos e ouvidos adultos:



tardivaga


era tarde
quando o caramujo recolheu à tua casa
era tarde tardizinha
quando aquela cor se viu na cinamomo
era tarde cor de acerola
quando seu amantino bebeu num trago só
mais um dia de capina e cachaça
era uma tarde serena
quando o galo desafinou diante da morte lenta
da luz bela e finita da tarde de são gonçalo do rio das pedras
tarde tão tardinha
que tudo fugia no andar traquino
daquele menino e seu boné
sem aba sem tino
tudo crescia em magia
quando a tarde morria
tarde de uma tardeza tardivaga

de tão belo crepúsculo
aquela tarde acendeu a noite
de uma lágrima feliz

(Fernando Cisco Zappa, in: Cisco Zappa, 17 fev. 2009).


metasignos bailarinos


agora só lhes prometo
metasignos bailarinos
dos anúncios coloridos
e palavras que ao acaso
- nas roletas do cassino –
colho côo cozinho
no caldeirão do destino
para montar o mosaico
desarranjado e mofino
que nada diga de fato
exceto que tudo foi dito[3].

(Fred Mattos, in: Nas horas e horas e meia, 15 jan. 2009).


Ploft


escrever poesia
algumas vezes
é como jogar
pedra em açude

as ondas se formam
e a gente descobre
que aquilo não é
poesia

é física[4]

(Lau Siqueira, in: Poesia sim, 04 fev. 2009)


aos predadores da utopia


dentro de mim
morreram muitos tigres

os que ficaram
no entanto
são livres

(Lau Siqueira, in: Poesia sim, 02 fev. 2009)


Zara


Zara
Chega e sobra
Me toca pelas bordas
Cabeça, dedos, cara.
Escorre.
Anda em falso.
Põe patas
e sobe escadas
nas minhas costas.
Não respeita malha
pijama
(ondula e espreita...).
Suéter
meia de seda
ou saia.
Arranha.
Zara é o anjo
que me zela.

(Marcelo Novaes, in: O lugar que importa, 13 dez. 2007).


Breve biografia dos autores:



Fernando Cisco Zappa é sociólogo “(de)formado pela UFMG e informado pelo princípio do toque”, segundo palavras do autor. Reside em Belo Horizonte onde atua como diretor da lúdica Escola Jasmim. Já publicou três livros em edições próprias: "Poesia como se fosse", "Pedrinhas líricas" e "Noites com rum". Além do blog Cisco Zappa, Fernando contribui com trabalhos na Web no Projeto Poema Dia.

Fred Mattos, natural de Salvador-BA, é autor dos livros: "Eu, Meu Outro" (Poemas / Poesia Diária, 1999); "Anomalias" (Kelps, 2002 / Poesia e "Melhor Que a Encomenda" - FUNCEB, 2006). Além dos títulos, o autor participou de antologias e concursos literários. Difunde a sua arte literária, em verso e prosa, no blog Nas horas e horas e meias.

Lau Siqueira, natural do Jaguarão-RS, reside em João Pessoa. Ao longo de sua carreira, o poeta publicou quatro livros de poemas: "O Comício das Veias" (Idéia-PB, 1993), "O Guardador de Sorrisos" (Trema-PB, 1998), "Sem Meias Palavras" (Idéia-PB, 2002) e "Texto Sentido" (Bagaço-PE, 2007) e aglutina participações em antologia. Na Web, o poeta publica poemas e ricas pontuações teórico-conceituais em seu blog Poesia Sim.

Marcelo Novaes, natural de São Paulo-SP, é formado em Psicologia. É autor do romance “Cidade de Atys” (Ateliê Editorial, 1998). Além de seu espaço poético na Web intitulado O lugar que importa, o escritor aglutina publicações no Portal de Literatura e Arte Cronópios, na Revista Corsário, no Caderno Literário da Editora Pragmatha de Porto Alegre, dentre outros cenários literários não menos ilustrativos.



Notas


[1] Não é objetivo desta seleta configurar uma profunda discussão sobre formação do leitor e adequação de leitura. Entretanto, é importante pontuar que um texto mesmo não-criado, especificamente, para crianças pode ser apresentado ao público infanto-juvenil, seja no ambiente familiar ou na sala de aula, desde que se tenha clareza das especificidades da criança/infância e dos objetivos educativos. Assim, no caso específico, o fato de os poemas serem lúdicos, mas direcionados à apreciação adulta não implica, necessariamente, em não-apreciação infantil, já que não se pode subestimar a sensibilidade poética, a capacidade de compreensão e plurissignificação textual das crianças. Entretanto, faz-se necessária, antes, a clareza por parte dos adultos, especialmente dos educadores sobre os objetivos educacionais do ensino, sobretudo quando se propõe desenvolver um projeto interdisciplinar envolvendo produtos culturais que, em síntese, não foram criados mediante o nível de maturidade do leitor em formação e desenvolvimento humano em seus vários aspectos.

[2] Os textos encontram-se expostos, na postagem, conforme a ordem alfabética dos nomes dos autores.

[3] Metasignos bailarinos é um dos poemas de Fred Mattos que integra o seu livro Anomalias (Kelps, 2002).

[4] Ploft e Aos predadores da utopia são poemas que integram o livro O Guardador de Sorrisos de Lau Siqueira (Trema, 1998).


Sugestão de leitura

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Perspectiva: São Paulo, 2000.