quinta-feira, 9 de março de 2017

A Escola e a Sociedade e A Criança e o Currículo


SUGESTÃO DE LEITURA:
A Escola e a Sociedade e A Criança e o Currículo

Hercília Maria Fernandes
Universidade Federal de Campina Grande
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

O livro "A Escola e a Sociedade e A Criança e o Currículo" corresponde a uma edição portuguesa de 2 (duas) obras do filósofo e educador norte-americano John Dewey (1859-1952): The School and Society (1900) e The Child and the Curriculum (1902). Publicado pela Relógio D’Água Editores (Lisboa, 2002), o livro está organizado em três partes; conforme exposição abaixo:

ÍNDICE:
Lista de ilustrações, 9
A ESCOLA E A SOCIEDADE
Nota do autor, 13
Nota do Autor à Segunda Edição, 15
   I. A Escola e o Progresso Social, 17
   II. A Escola e a Vida da Criança, 37
   III. O Desperdício na Educação, 59
   IV. A Psicologia da Educação Elementar, 83
   V. Os Princípios da Educação de Froebel, 101
   VI. A Psicologia das Ocupações, 115
   VII. O Desenvolvimento da Atenção, 121
   VIII. O Objectivo da História na Educação Elementar, 131
PÓS-ESCRITO: TRÊS ANOS DE ESCOLA ELEMENTAR UNIVERSITÁRIA, 139
A CRIANÇA E O CURRÍCULO, 155

Segundo explanação dos editores, a obra apresenta, “[...] de modo sucinto, a inovadora filosofia da educação de John Dewey enquanto processo experimental e centrado na criança”. Assim sendo, em A Escola e a Sociedade e A Criança e o Currículo, estudantes e educadores poderão dialogar com os conceitos deweyanos de “interesse”, “esforço”, "experiência", "inteligência", "educação" e "sociedade"; ampliando, dessa forma, a reflexão acerca da “vida” da criança na escola e do seu natural instinto de atividade e experimentação, de modo a conferir às ações escolares um sentido mais amplo de formação humana e de educação formal como prática de democracia.
Para tal feito, faz-se necessária (ainda hoje?...) a edificação de uma revolução copernicana na educação, capaz de realizar “uma transferência do centro de gravidade”. Nas palavras de John Dewey (2002, p. 40-41, grifos do autor):

Eu talvez tenha exagerado um pouco, por forma a salientar bem os aspectos típicos da velha educação: o seu incentivo à passividade, a sua massificação mecânica das crianças, a sua uniformidade de programas e métodos de estudo. Aquilo que a caracteriza pode ser resumido se dissermos que o seu centro de gravidade é exterior à criança. Situa-se no professor, no manual, em qualquer parte e em toda a parte excepto nos instintos e nas atividades imediatas da própria criança. Quando assim é, pouco há a dizer sobre a vida da criança. Muito haveria a dizer sobre os estudos da criança, mas a escola não é um local onde ela viva. A mudança que tem vindo a ser introduzida na educação é uma transferência de centro de gravidade. É uma mudança, uma revolução, não muito diferente da que Copérnico iniciou ao transferir o centro astronômico da Terra para o Sol. No caso em análise, a criança converte-se no Sol em volta do qual gravitam os instrumentos da educação; ela é o centro em torno do qual estes se organizam.

E, prossegue...

Se tomarmos o exemplo dum lar ideal, onde o pai é suficientemente inteligente para reconhecer o que é melhor para a criança e tem possibilidade de proporcionar-lho, veremos que a criança aprende através do intercambio social no seio da estrutura familiar. [...] Pois bem, se organizarmos e generalizarmos tudo isto, teremos a escola ideal. Não há nisto mistério algum, nem se trata duma maravilhosa descoberta das teorias pedagógicas ou educativas. É apenas uma questão de fazer sistematicamente e duma forma ampla, inteligente e competente aquilo que, por várias razões, na maioria dos lares só pode ser feito duma maneira comparativamente mais pobre e ocasional. A criança deve contactar com um maior número de adultos e de crianças, para que a sua vida social seja o mais livre e rica possível. [...] Nesta escola, a vida da criança transforma-se no objectivo dominante. Todos os meios necessários para favorecer o seu desenvolvimento se centram aqui. Aprender? Certamente, mas antes de mais viver, e aprender através e em interacção com esta vivência. Quando a vida da criança passa a ser centrada e organizada deste modo, deixamos de vê-la acima de tudo como um ente que ouve; a nossa perspectiva inverte-se radicalmente.

No Brasil, as problematizações e conceitualizações propostas por John Dewey em torno da funcionalidade da escola, do sujeito que aprende e do quê, onde, como, quando e para quê aprende, mediante as transformações em curso nas estruturas da sociedade brasileira no século XX, foram amplamente refletidas e difundidas pelo filósofo e educador Anísio Spínola Teixeira; assim como por tantos outros intelectuais e educadores da chamada Nova Educação ou Escola Nova, ou, ainda, Escola Ativa. Entre os diversos defensores dessa nova educação, destaca-se o nome da professora, escritora e formadora de educadores infantis “Heloísa Marinho”. A autora, não escondendo a orientação deweyana de “educação pela e para a vida”, expandira os conceitos e os princípios educativos defendidos pelo filósofo em fecunda produção bibliográfica de natureza pedagógica, em que se destaca o livro Vida e educação no Jardim de Infância.
Os livros de Heloísa Marinho, assim como a vasta obra do professor Anísio Teixeira, colaboraram para edificar uma “tradição pedagógica” centrada na criança e em seu natural e social desenvolvimento; contribuindo para materializar uma forma escolar e um modo escolar (específico) de socialização da infância nas instituições educativas, que, aparentemente, resistem à ação do tempo. Mesmo um século após grande circulação da filosofia sócio educacional deweyana ainda é possível reconhecer as marcas fundadoras dessa nova pedagogia. O que demonstra, em grande medida, a atualidade do pensamento de John Dewey, e, de modo particular, a importância de leitura e reflexão das obras A Escola e a Sociedade e A Criança e o Currículo.


Referências:
DEWEY, John. A escola e a sociedade. A criança e o currículo. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2002.
MARINHO, Heloísa. Vida e educação no jardim de infância. Programa de Atividades. 3. ed. Rio de Janeiro: Conquista, 1967.


 *Para adquirir o livro: Livraria Cultura


quarta-feira, 8 de março de 2017

Resenha: A educação (esférica) do homem

FROEBEL, Friedrich Wilhelm August. A educação do homem. Apresentação e Tradução Maria Helena Camera Bastos. Passo Fundo (RS): Universidade de Passo Fundo-UPF, 2001.[1]

Hercília Maria Fernandes
Universidade Federal de Campina Grande
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

A educação do homem, título original Die menschenerziehung (1826), de autoria do educador alemão Friedrich Wilhelm August Fröbel (1782-1852), é uma obra clássica da educação e da pedagogia do século XIX. Escrito de 1823 a 1825, o livro reúne as teorizações das experiências educativas desenvolvidas por Friedrich Froebel no Instituto de Educação de Keilhau. No Brasil, mesmo com a grande difusão do Kindergarten froebeliano, o livro somente foi publicado quase um século após a edição espanhola – Da educación del hombre (1913) –, apresentado e traduzido pela professora Maria Helena Camara Bastos. Editado pela Universidade de Passo Fundo, a publicação está assim organizada: “Apresentação”; “Cronologia”; “Bibliografia”; “Introdução”, “Capítulos” (30) e “Conclusão”.
Em linhas gerais, A educação do homem sistematiza a teoria educacional de Friedrich Froebel fundamentada em sua “Filosofia da esfera”, originária dos estudos das ciências naturais e da metafísica. Na obra, o criador do “Jardim de crianças” ordena, coerentemente, os princípios da educação esférica, que propiciam forma e direção ao “ensino educador”. Além de noções da cristalografia e do idealismo alemão, a teoria educacional froebeliana compreende o preceito cristão de a consciência humana e de o homem fazerem parte da Criação. Deus é a unidade manifesta na pluralidade da natureza, situando-se além do mundo e no núcleo da criação. Cada coisa, ser vivo, é uma criatura determinada por uma força divina, cuja multiplicidade revela-se na unidade subjacente. Assim, a esfera é o princípio constante, gravitacional, que volta a repousar em si. É, pois, a lei fundamental do Universo, do mundo físico e psíquico, do corpo e da alma.
Assim sendo, A educação do homem poderá ser examinada a partir de algumas orientações de investigação: dos fundamentos da Filosofia da esfera às teorizações sobre o desenvolvimento humano e à Pedagogia escolar, que, articulados, sistematizam “o que” a escola “deve” e “como” deve “ensinar”. Por sua profundidade teórica, a Resenha objetiva uma compreensão dos princípios da educação esférica. Para tanto, o trabalho examina a “Introdução” e os capítulos “A primeira infância”, “O menino” e “O garoto”. Essa delimitação é de ordem pedagógica e conceitual, pois, nessas partes, Friedrich Froebel reflete as bases educacionais e científicas de A educação do homem.
O pedagogo Friedrich Froebel (2001, p. 23) associa, por seu turno, o desenvolvimento humano à “natureza” e os processos educativos ao ideário cristão da “semeadura”. O homem é parte da totalidade, é manifestação viva da pluralidade e da unidade. A natureza, qualificada pela diversidade exterior, é regida por uma “Lei interior”, esférica, que tende à harmonia e à unificação. Constituída por uma estrutura de forças dialéticas, a natureza reúne a particularidade e a totalidade das coisas e da existência humana; consistindo em tarefa da educação: “Suscitar as energias do homem – ser progressivamente consciente, pensante e inteligente –, ajudá-lo a manifestar a sua lei interior [...] com toda a pureza e perfeição, com espontaneidade e consciência”.
A doutrina da qual se nomeia educação se refere ao conhecimento dessa lei interior, sendo a sua reflexão “a ciência da vida”. A arte da educação corresponde à “[...] livre aplicação desse conhecimento [...] para a formação e desenvolvimento imediato de seres racionais”. A condução humana se desenvolve em um processo dialético estabelecido entre o indivíduo e a natureza: Deus que se manifesta na natureza e o homem como expressão, também, dessa natureza. Assim, o ensino deve oferecer ao homem “a intuição e o conhecimento do divino [...], os quais constituem a essência dessa natureza”. Mediante esse conhecimento, a educação deve repousar “sobre o interior e o mais íntimo da personalidade” (p. 23 e 24).
A dialética exterior-interior e interior-exterior assume um valor substancial na teoria educacional froebeliana. Por intermédio do exterior, o interior se torna conhecido. As manifestações externas devem constituir, assim, “o ponto de apoio de toda a educação”, não devendo, porém, se restringir a deduzir o interior pelo exterior. Deve, antes, buscar compreender “[...] a essência das coisas, encontrando-a na dupla relação do externo com o interno e do interno com o externo” (p. 24). Desses pares dialéticos, fundem-se os princípios da educação esférica de Friedrich Froebel, potencializadores de um ensino educador.
A dialética exterior-interior e vice-versa se conjuga a outras dialéticas: à “particular-geral” e à “pluralidade-individualidade”. O ensino educador deve apresentar “[...] o individual e o particular como geral, e o geral como particular e individual”. Deve “exteriorizar o interior e interiorizar o externo”, revelando a “unidade entre ambos”. Sendo o “único objetivo” e o “único fim” de toda educação o “[...] cultivo integral da essência original divina contida no homem”, o ser humano “[...] deve ser tratado como membro necessário e essencial da humanidade” (p. 30). A concepção de homem froebeliana é associada, assim, à dialética pluralidade-individualidade. Embora cada indivíduo possa recorrer aos estágios de evolução que lhes são precedentes, “[...] o novo sujeito [...] vem a ser um modelo vivo para o futuro”. Por conseguinte, a evolução humana deve se orientar no “[...] caminho vital do próprio desenvolvimento e da espontânea formação [...]” (p. 31), que se realiza, somente, pela “exteriorização”, composta pela essência da tríplice manifestação: “unidade, individualidade e pluralidade”. Somente a tríplice manifestação conduz “[...] à compreensão verdadeira dessa essência e ao conhecimento exato da coisa mesma”. (p. 32-33).
O pedagogo Friedrich Froebel relaciona, dessa forma, o desenvolvimento à faculdade de “aprender e apreender”. O desenvolvimento consiste uma evolução “contínua e ininterrupta”, que se concretiza na e pela aprendizagem. Cada coisa não se apresenta como um “[...] todo isolado e indivisível, mas como um composto de elementos distintos, subordinados a um fim superior e geral”. O objeto não basta em si mesmo. Contrariamente, consiste “um anel da cadeia, um membro de um organismo maior”, que coopera “para uma finalidade universal”; exigindo a compreensão dos “seus enlaces e contatos exteriores”, e, principalmente, de “suas relações internas, sua íntima unidade com as coisas” (p. 68). Esse entendimento acerca da aprendizagem do objeto fundamenta a concepção froebeliana de desenvolvimento humano.
O desenvolvimento do homem não constitui uma sucessão linear “[...] de distinções e divisões [...] que impedem de ver o que [...] constitui sua unidade e substância”. (p. 36). Aproximando-se às concepções de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), Friedrich Froebel (p. 38) adverte que: “Nem a criança, nem o jovem, nem o homem devem ter outra aspiração senão a de serem em cada período da vida o que esse período exige”. Cada etapa pode ser comparável a uma “flor nova saída de brotos saudáveis”, servindo de base às seguintes. Esse teórico da pedagogia moderna ressalta, assim, as três grandes fases do desenvolvimento: a do “bebê”, quando o interior se manifesta pelo movimento e pelos sentidos; a da “criança”, quando o interior se revela pela palavra e pelo jogo; e a do “jovem”, quando o ensino formal assume importante função na interiorização de conceitos. Embora apresentem especificidades próprias, essas fases não se dissociam umas das outras. Realidade que pressupõe uma formação esférica, pautada nas intersecções com os objetos, com as brincadeiras e jogos, com a linguagem, o trabalho e a atividade criadora.
Os objetos exteriores excitam o infante ao movimento e os sentidos a conhecer sua essência e relações, constituindo os “[...] instrumentos com os quais pode interiorizar as coisas que o rodeiam”. (p. 43). A criança deve relacionar os objetos aos seus opostos: à “palavra” e ao “signo” correspondente, fazendo-a ver uma “unidade [...]” (p. 44), que guiará a sua intuição e o conhecimento dos objetos. As brincadeiras e os jogos constituem, nesse sentido, “o mais alto grau de desenvolvimento do menino”, sendo uma “manifestação espontânea do interno” (p. 47). As atividades lúdicas objetivam “levar a criança à consciência de si mesma”. Das relações familiares com a linguagem decorre o “sentimento de comunidade”, orientando “[...] a consciência de sua própria vida mediante o movimento [...] regular, ordenador e rítmico”. (p. 54). Assim, as propriedades do número, da forma, do conhecimento do espaço; da natureza, dos fenômenos da matéria etc., excitam a atenção e o interesse infantil; possibilitam que “[...] o mundo da natureza e o mundo da arte [...]” separem-se aos olhos da criança, elevando “o sentimento de mundo interior” (p. 63).
A linguagem, durante o desenvolvimento humano, assume um alto valor educativo. Com a representação simbólica da existência, “[...] sai o homem das primeiras fases de sua infância para iniciar aquela outra a que [...] chamaremos de um garoto”. (p. 69). O atributo excepcional dessa etapa condiz à “conversão do garoto em aluno”. Na escola, o homem adquire “[...] o conhecimento essencial dos objetos exteriores segundo as leis particulares de cada um deles e as leis gerais do mundo”. (p. 70). À escola caberia, assim, “[...] converter em firmeza de caráter a vontade natural do garoto [...]”, já que o jovem trabalha “[...] pela obra realizada, pelo produto obtido”. (p. 71 e 72).
O trabalho constitui, assim, princípio e meio de educação, devendo ser cultivado em harmonia à palavra e ao exemplo. Segundo Friedrich Froebel, “[...] o primitivo instinto de atividade transforma-se no instinto de produção” ao assumir características de “jogo”, de “atividade criadora”, à medida que promove “um sentimento comum, social”. (p. 72). Essa educação prática não deve consistir, no entanto, único meio de formação. Nessa fase, o jovem demonstra interesse “pela fábula e pelo conto”, porque “[...] emprestam linguagem e razão aos seres que deles carecem”. Diversas expressões do garoto podem encobrir um “fundo sentimento espiritual”, que “têm valor simbólico” (p. 80), exigindo que se busque a “dupla causa” das vicissitudes: a negligência adulta “[...] de importantes aspectos da natureza humana [...] e o [...] sentido falso e antinatural” de noções que distorcem “[...] as boas disposições”. Sendo o homem “essencialmente bom”, só há um “meio” de suprimir os defeitos: buscar “[...] aquela primitiva tendência boa, que, perturbada e distorcida, deu origem ao mal [...]”. (p. 81 e 82). As possíveis “falhas” do aluno decorrem da ação dos mestres, que atuam como “aves de mau agouro”, ao atribuir-lhes “[...] intenções e propósitos dos quais não têm nenhuma ideia”. Uma educação escolar equivocada afoga, dessa forma, o anseio das crianças de “[...] conhecer as coisas naturais, [...] ao que está oculto na natureza [...]”, perturbando a sua “santa aspiração” e as suas “naturais tendências”. (p. 84 e 85).
Pelo exame dos princípios da educação esférica sistematizados por Friedrich Froebel, compreende-se que A educação do homem estabelece uma associação entre ciência e educação para promover a elevação da consciência humana. Aquisição que se define na relação entre o exterior e o interior, donde decorre a unificação da vida. Visando a essa finalidade, a teoria de desenvolvimento humano de Friedrich Froebel, articulada à sua pedagogia escolar, orienta-se na potencialidade das energias e das forças elementares do homem à apreensão da lei das coisas.
O ensino educador, mediante os preceitos da educação esférica, consiste em uma articulação ativa e dialética com o objeto da lição, para, assim, auxiliar o aluno a compreender a estrutura do objeto, orientando a sua reflexão e as indicações para avançar o conhecimento. À medida que aprende e apreende o objeto, o homem eleva a consciência de sua essência e existência humanas. O “esferismo” de Friedrich Froebel, nesse particular, consiste, simultaneamente, em uma teoria científica e uma doutrina da educação, fundada na associação entre o objeto científico e o conhecimento subjetivo.



[1] Resenha publicada, originariamente, na Revista Educação em Questão, do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ver arquivo em PDF.

Para referenciar:
FERNANDES, Hercília M. A educação (esférica) do homem. Revista Educação em Questão, Natal, v. 53, n. 39, p. 255-260, set./dez. 2015.

Resenha: Pedagogia científica à descoberta da criança

MONTESSORI, Maria Tecla Artemesia. Pedagogia científica: a descoberta da criança. Tradução Aury Azélio Brunetti. São Paulo: Editora Flamboyant, 1965.[1]

Hercília Maria Fernandes
Universidade Federal de Campina Grande
Marta Maria de Araújo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Pedagogia científica: a descoberta da criança, título original La Scoperta del Bambino (1909), é uma das obras clássicas da médica e educadora italiana Maria Tecla Artemesia Montessori (1870-1952), resultante de estudos e experiências escolares, desenvolvidos por Maria Montessori nas “Casas dei Bambini”, instaladas, inicialmente, em San Lorenzo, bairro de Roma, Itália. A resenha justifica-se pela relevância da obra à Pedagogia da Escola Nova ou à Pedagogia Experimental, últimos ensinamentos na ciência de um modo de ensinar e educar a criança em conformidade às bases do “Método Montessoriano”, relacionado com a educação sensorial.
O livro discute a educação da criança pelos princípios, especialmente, da Pedagogia Experimental, sendo constituído por “Apresentação”, de Madre Ana Vitória de Sion; “Introdução”, de Mário M. Montessori (único filho de Maria Montessori), e “Capítulos”. A finalidade de Montessori (1965, p. 9) era atribuir “[...] aos novos métodos [...] uma via prática, que presumem dotar a pedagogia de uma utilização mais ampla das experiências científicas sem, contudo, afastá-la dos princípios especulativos que lhe constituem as bases naturais”.
No primeiro capítulo “Considerações críticas”, Maria Montessori reflete a necessidade de reformar a escola e de afirmar uma pedagogia de base científica. Opondo-se às recompensas e punições escolares, por ela concebidos “carteira escolar da alma”, defende com veemência a “liberdade” como princípio norteador do modo de educar. A “reforma da escola” permitiria “o livre desenvolvimento da atividade da criança”, para assim se exercitar uma pedagogia científica. O educador, “observador da humanidade”, de “alma mística e científica”, aprenderia com a criança a se aperfeiçoar como educador.
Em “Antecedentes do método”, Maria Montessori se referencia no método fisiológico de Édouard Séguin, à educação das “crianças mentalmente deficientes”. Atenta aos fundamentos da Psicologia, da Higiene e da Antropologia, principalmente, adverte que o método educativo às crianças “normais” estava por delimitar-se. Os estudos sobre a criança, em si, não consistiam em uma pedagogia científica, por ausência de compreensão da atividade infantil ou de “um novo modo de educar”. O Método Experimental deveria pautar-se na observação das livres expressões das crianças, em ambiente estimulador capaz de fazer “descobrir [...] a sua verdadeira psicologia”.
No capítulo “O ambiente”, Maria Montessori defende a criação de um ambiente escolar que permita “[...] a observação metódica do crescimento morfológico dos alunos” (p. 42). A observação metódica ou o “método da observação” fundamenta-se na “[...] liberdade de expressão que permite às crianças revelar-nos suas qualidades e necessidades” (p. 42). Propõe, então, um “padrão de mobília escolar” composto por mesas, cadeiras, armários, pias, objetos sensoriais e “da vida prática” proporcionais à fisiologia da criança e à sua necessidade de agir inteligentemente. A função da “mestra”, nesse caso, consiste em orientar o uso específico de cada material no ambiente.
Conceder liberdade às crianças, segundo a autora, é libertá-las de “[...] obstáculos que impedem o desenvolvimento normal de sua vida” (p. 58). “A saúde” dos “pequerruchos” depende dos estímulos oferecidos pelos adultos, de modo a não “oprimir” e “enfraquecer” a alma e o corpo infantil. Fazer com que cada criança na escola se sinta compreendida em suas necessidades “[...] é abrir-lhes as portas da saúde” (p. 60). Assim, em “A natureza na educação”, orientada nas ideias de Jean Jacques Rousseau, Maria Montessori argumenta que a primeira infância necessita “viver em natureza” e “não apenas conhecê-la”. As energias musculares da criança demandam “libertar sua natureza”, revelando a saúde de sua força física.
Em “O homem vermelho e o homem branco”, Maria Montessori prossegue a discussão sobre as energias musculares. Pensa a vida vegetativa (sistema sanguíneo) e a vida de relações (sistema nervoso), em que figuram mecanismos de interdependência necessários ao funcionamento do organismo. Por isso, nenhum método de educação deve inibir o “movimento”, mas auxiliá-lo “[...] ao bom emprego das energias e ao desenvolvimento normal” (p. 78-79). Relaciona, pois, uma variedade de materiais e exercícios articulados à “vida prática”: pôr a mesa, abrir e fechar gavetas, abotoar camisas e enlaçar fitas; ao “andar”: equilibrar-se sobre uma “linha” desenhada em “elipse” no pavimento e à “livre escolha”: tocar, associar e agrupar cartões de lixa, barras, bastonetes em fusos para cálculos decimais, prismas, encaixes planos e cilindros sólidos, letras móveis sobre um “tapetinho”. Esse conjunto de elementos articulado às atividades sensoriais proporciona unidade ao “Método Montessoriano”, base da educação dos sentidos.
No capítulo “Generalidades sobre a educação sensorial”, Maria Montessori reflete a educação dos sentidos que precede às faculdades intelectuais superiores, devendo ocorrer “[...] mediante uma graduação e adaptação dos estímulos [...]” que auxiliará “[...] na formação da linguagem” (p. 98). Os materiais sensoriais devem se agrupar em série mediante determinadas qualidades: cor, forma, dimensão, som, textura, peso, temperatura etc. Trata-se de uma “[...] graduação em que a diferença de objeto a objeto varia regularmente” (p. 105). Para tanto, deve-se “isolar”, apenas, uma qualidade do material. A fim de trabalhar o sentido “visual”, por exemplo, a mestra apresenta à criança objetos idênticos de modo a se identificar apenas uma diferença: a “cor”. Além do princípio de “isolamento”, os materiais devem conter “controle do erro”, “estética”, “possibilidade de auto-atividade” e “limites”. Nesse modo de ensinar e educar, a mestra deve “dar a sua lição” com “simplicidade, objetividade e veracidade” mediante “três tempos”: i) pronunciar os nomes e adjetivos dos objetos com exatidão: “este é liso, este é áspero!”; ii) comprovar se a criança apreendeu a sua propriedade, apontando qual objeto é “liso” ou “áspero”; iii) pronunciar o nome da qualidade de cada objeto, conforme pergunta da mestra: “como é isto?”. Se a criança apreendeu o nome da propriedade, responderá: “isto é liso; ou, isto é áspero!”.
Os órgãos dos sentidos, segundo Maria Montessori, são órgãos de “apreensão” que estimulam o “entendimento” das imagens do mundo exterior, como a mão é o órgão de apreensão da matéria. Por essa razão, a Pedagogia Experimental, destinada a “elevar a inteligência”, deverá elevar esses dois meios de atividade: “os sentidos e as mãos”. Os “Exercícios” sensoriais consistem “A pedra de toque” para “observar” como a criança “[...] aprendeu a pôr cada coisa em seu lugar” (p. 166). O “ensino do silêncio”, favorecedor da disciplina motora e mental; os exercícios dos “mecanismos da inteligência”, indispensáveis ao controle do lápis na mão e sentido de direção das formas, letras e números; e as “percepções” táteis, visuais e auditivas, necessárias à correspondência sonora e gráfica e às “diferenciações” de propriedades, constituem, portanto, os “materiais de desenvolvimento” que direcionam, gradualmente, o modo de ensinar e educar a criança na sala de aula infantil.
A “Linguagem gráfica”, a “Leitura”, a “Numeração e iniciação à aritmética”, o “Desenho”, a “Música”, a “Educação religiosa” e a “Disciplina”, integram, conjuntamente, uma “série de exercícios” que constitui a educação da primeira infância, mediante “Ordem e progressão na apresentação do material”. Isto é, sucessão de “graus” da Pedagogia Experimental. Em outras palavras, representa o “método da educação sensorial” refletido, aplicado e analisado pela educadora Maria Montessori.
A “educação dos sentidos”, mediante gradação e adaptação dos estímulos sensoriais, é que permitia, pois, a “instrução” de cada criança pela própria iniciativa. Os princípios do “Método Montessoriano” oferecem “direção” à experimentação ativa dos objetos. O “contrôle do êrro” dos “materiais de desenvolvimento” possibilita redimensionar a ação da criança, dirigindo a sua atividade para “novas descobertas” – fundamento da Pedagogia Experimental. Oferta, simultaneamente, elementos às “observações psicológicas” da nova mestra, “diretora do trabalho espontâneo”.
Enfim, a Pedagogia Experimental com seus fundamentos bio-psicológicos, antropológicos e sociológicos habilitaria o mestre a distinguir cada individualidade para acompanhar, sistematicamente, seu desenvolvimento físico, mental, moral. Por conseguinte, a Pedagogia Experimental, colaborando com a observação e a experimentação nos lugares de aprendizado e de sociabilidade da criança, orientava um modo de ensinar renovado, fazendo uso em “larga escala” da educação dos sentidos.


[1] Resenha publicada, originariamente, na Revista Educação em Questãodo Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ver arquivo em PDF.

Para referenciar: FERNANDES, Hercília M.; ARAÚJO M. M. Pedagogia científica à descoberta da criança. Revista Educação em Questão, Natal, v. 50, n. 36, p. 248 -252, set./dez. 2014.