Há poemas que não tematizam o universo infanto-juvenil, não expressam as singularidades da infância e a pluralidade sócio-cultural existente no cotidiano das crianças: seja nas ruas, nas favelas, nas escolas, nas cirandas... porém, são verdadeiros brincos sonoros, estilísticos e semânticos.
São textos lúdicos, pois brincam com os sons, as palavras, os ritmos, as pausas, os sentidos... propondo desafios de construção semântica aos leitores. Parecem até nos dizer em um frenético trem, bolha de sabão, arco-íris ou treme-treme que “poesia é brincar com palavras”, como poetiza o autor brinquedista José Paulo Paes.
Esses poemas, no entanto, apesar de lúdicos, ou conterem “elementos lúdicos”, conforme teorização de Huizinga em o Homo Ludens (2000), trabalham com sérias questões e problemáticas, sejam elas conceituais, emotivo-sentimentais, reflexivas, míticas e/ou metafísicas; podendo, portanto, serem considerados “jogos” para o entretenimento, à reflexão e à produção do conhecimento do leitor adulto[1].
Atendendo a essas considerações iniciais, o Novidades & Velharias reúne, nesta postagem, poemas com características lúdicas que propõem desafios e jogos de significação aos leitores e se destacam pela dinamicidade rítmica, adoção de uma linguagem enriquecida em aliterações, diminutivos, onomatopéias, rimas e imagens oníricas ligadas a animais. A simplicidade da linguagem e o uso de recursos lúdicos, no entanto, não enganam o olhar atento adulto, já que os textos desenvolvem temáticas profundas, apresentando ricas contextualizações, sentidos e combinações complexas.
Assim, para composição desta seleta, o Novidades & Velharias apresenta cinco textos[2], de quatro poetas que, abundantemente, se destacam dentro e fora da Web com criações lúdicas dirigidas, também, ao leitor experiente, quais sejam: Fernando Cisco Zappa, Fred Mattos, Lau Siqueira e Marcelo Novaes.
Passemos para estes brincos confeccionados para olhos, mãos e ouvidos adultos:
era tarde
quando o caramujo recolheu à tua casa
era tarde tardizinha
quando aquela cor se viu na cinamomo
era tarde cor de acerola
quando seu amantino bebeu num trago só
mais um dia de capina e cachaça
era uma tarde serena
quando o galo desafinou diante da morte lenta
da luz bela e finita da tarde de são gonçalo do rio das pedras
tarde tão tardinha
que tudo fugia no andar traquino
daquele menino e seu boné
sem aba sem tino
tudo crescia em magia
quando a tarde morria
tarde de uma tardeza tardivaga
de tão belo crepúsculo
aquela tarde acendeu a noite
de uma lágrima feliz
(Fernando Cisco Zappa, in: Cisco Zappa, 17 fev. 2009).
metasignos bailarinos
dos anúncios coloridos
e palavras que ao acaso
- nas roletas do cassino –
colho côo cozinho
no caldeirão do destino
para montar o mosaico
desarranjado e mofino
que nada diga de fato
exceto que tudo foi dito[3].
(Fred Mattos, in: Nas horas e horas e meia, 15 jan. 2009).
escrever poesia
algumas vezes
é como jogar
pedra em açude
as ondas se formam
e a gente descobre
que aquilo não é
poesia
dentro de mim
morreram muitos tigres
os que ficaram
no entanto
são livres
(Lau Siqueira, in: Poesia sim, 02 fev. 2009)
Zara
Chega e sobra
Me toca pelas bordas
Cabeça, dedos, cara.
Escorre.
Anda em falso.
Põe patas
e sobe escadas
nas minhas costas.
Não respeita malha
pijama
(ondula e espreita...).
Suéter
meia de seda
ou saia.
Arranha.
Zara é o anjo
que me zela.
(Marcelo Novaes, in: O lugar que importa, 13 dez. 2007).
Breve biografia dos autores:
Fernando Cisco Zappa é sociólogo “(de)formado pela UFMG e informado pelo princípio do toque”, segundo palavras do autor. Reside em Belo Horizonte onde atua como diretor da lúdica Escola Jasmim. Já publicou três livros em edições próprias: "Poesia como se fosse", "Pedrinhas líricas" e "Noites com rum". Além do blog Cisco Zappa, Fernando contribui com trabalhos na Web no Projeto Poema Dia.
Fred Mattos, natural de Salvador-BA, é autor dos livros: "Eu, Meu Outro" (Poemas / Poesia Diária, 1999); "Anomalias" (Kelps, 2002 / Poesia e "Melhor Que a Encomenda" - FUNCEB, 2006). Além dos títulos, o autor participou de antologias e concursos literários. Difunde a sua arte literária, em verso e prosa, no blog Nas horas e horas e meias.
Lau Siqueira, natural do Jaguarão-RS, reside em João Pessoa. Ao longo de sua carreira, o poeta publicou quatro livros de poemas: "O Comício das Veias" (Idéia-PB, 1993), "O Guardador de Sorrisos" (Trema-PB, 1998), "Sem Meias Palavras" (Idéia-PB, 2002) e "Texto Sentido" (Bagaço-PE, 2007) e aglutina participações em antologia. Na Web, o poeta publica poemas e ricas pontuações teórico-conceituais em seu blog Poesia Sim.
Marcelo Novaes, natural de São Paulo-SP, é formado em Psicologia. É autor do romance “Cidade de Atys” (Ateliê Editorial, 1998). Além de seu espaço poético na Web intitulado O lugar que importa, o escritor aglutina publicações no Portal de Literatura e Arte Cronópios, na Revista Corsário, no Caderno Literário da Editora Pragmatha de Porto Alegre, dentre outros cenários literários não menos ilustrativos.
Notas
[1] Não é objetivo desta seleta configurar uma profunda discussão sobre formação do leitor e adequação de leitura. Entretanto, é importante pontuar que um texto mesmo não-criado, especificamente, para crianças pode ser apresentado ao público infanto-juvenil, seja no ambiente familiar ou na sala de aula, desde que se tenha clareza das especificidades da criança/infância e dos objetivos educativos. Assim, no caso específico, o fato de os poemas serem lúdicos, mas direcionados à apreciação adulta não implica, necessariamente, em não-apreciação infantil, já que não se pode subestimar a sensibilidade poética, a capacidade de compreensão e plurissignificação textual das crianças. Entretanto, faz-se necessária, antes, a clareza por parte dos adultos, especialmente dos educadores sobre os objetivos educacionais do ensino, sobretudo quando se propõe desenvolver um projeto interdisciplinar envolvendo produtos culturais que, em síntese, não foram criados mediante o nível de maturidade do leitor em formação e desenvolvimento humano em seus vários aspectos.
[2] Os textos encontram-se expostos, na postagem, conforme a ordem alfabética dos nomes dos autores.
[3] Metasignos bailarinos é um dos poemas de Fred Mattos que integra o seu livro Anomalias (Kelps, 2002).
[4] Ploft e Aos predadores da utopia são poemas que integram o livro O Guardador de Sorrisos de Lau Siqueira (Trema, 1998).
Sugestão de leitura
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Perspectiva: São Paulo, 2000.
Gostei muito de suas considerações, Hercília - E gosto muito também dos escritores citados. Parabéns por mais este belo e enriquecedor trabalho!
ResponderExcluirUm grande abraço,
Lou
sou fã dos quatro, todos ótimos em suas singularidades... o seu texto traz esse aspecto do lúdico, por vezes desconsiderado e ao meu ver indispensável (não só para crianças!)
ResponderExcluirparabéns,
beijos
ResponderExcluirhercília,
gosto muito dos posts que vc tão bem elabora para o novidades & velharias...
adoro o fernando, o lau, o fred e o marcelo - todos muito bons poetas, cada um com um estilo próprio e inconfundível...
e, claro, o seu olhar analítico aliado à sua sensibilidade, para reuni-los aqui em tão boa matéria.
parabéns!
Você me colocou entre feras, Hercília.
ResponderExcluirO Lau é um velho amigo do qual sou fã desde criancinha
O Marcelo faz pouco tempo que conheço, mas tenho lido “O lugar que importa”e gosto muito.
O Cisco estou conhecendo graças a você (e fico devendo esse): fui ao blog dele, é cobra criada.
Sendo assim, só me resta agradecer.
Beijo
Hercília,
ResponderExcluirVisite o site Tigre Albino
http://www.tigrealbino.com.br
Lá recentemente publicaram muitos artigos interessantes sobre poesias para crianças.
Bjs
Bea
Lou
ResponderExcluirLorenzo
Adrianna Coelho
Beatriz
Muito obrigada por visitarem o Novidades & Velharias e deixarem suas marcas, sempre inconfundíveis, por aqui.
Marcelo
Fred
Fico muito feliz que tenham apreciado esse brevíssimo ensaio sobre ludismo. Porém, abundantemente pontuado com suas belíssimas obras.
Forte abraço, amigos!
H.F.
Parabéns e obrigada Hercília, por nos contactar com essas "feras", que passarei a frequentar mais. Particularmente, me identifico muito mais com o lúdico. A criança em mim, ainda não cresceu, acho que é isso.
ResponderExcluirEscrevi e li o TARDIVAGA, hoje para um menino de 8 anos. Ele ouviu atentamente e "me explicou": GOSTEI DA TARDIVAGA, porque sempre penso que tartaruga, é preocupada e tem ruga. E por aí foi voando em suas conclusãos.
Achei interessante e repasso essa experiência .
Mais uma vez Parabéns por expor informações tão preciosas.
Beijos
Mirze
ei hercília,
ResponderExcluiro dia abre o presente para todos nós
com o que há de novo e velho
sob o sol
e esse seu espaço
é um lugar de presentes
saiba que é muito bom estar aqui
com você
com o marcelo novaes, com quem teci prosas de palavras aladas muito ricas e instigantes recentemente, ao qual sou muito grato
com o fred, poeta e prosador que conheci aqui e que devo dizer já: em suas horas e meias entretantas outras e outros de eus exuberantes - com borboletas e asnos encantadores...
lau siqueira e sua poesia leve, seu rápido gatilho de olhar / seu longo palavrar / seu brincar estalar espocar... que tergiversa com lirismos e provocações...
hercília
esse seu gesto
é também lúdico: tem o ritmo do repetir que se reflete em jogo inaugural: a cultura.
winnicott nos adiantou que o espaço lúdico permite ao indivíduo criar e entreter uma relação aberta e positiva com a cultura.
brincar é arquétipo de toda atividade cultural e, juntamente com a arte (irmãs em gestos) extrapolam e superam o real.
a palavra, na mão do poeta que brinca, é um instrumento do próprio fazer poético: o poeta trinca a palavra e a lança em um jogo de descolamentos e aliterações que provoca: risos e espantos.
assim como um simples osso vira avião monstro carro árvore e volta a ser osso
a palavra na mão do poeta sobrevoa o mundo dos sentidos a misturar significantes e significados... como um baile de carnaval
depois volta satisfeita na boca do senso comum e foge na quarta-feira...
agradeço a você
hercília
por ter me apresentado o fred e o lau.
abraços ternos a todos vocês!
Mirze,
ResponderExcluirboa demais a interpretação da criança que você apresentou o poema do Cisco Zappa. E muito legal a sua iniciativa. Eu também amei o Tardivaga do Fernando.
Muito obrigada, amiga, por suas visitas e considerações!
Forte abraço,
H.F.
Fernando,
ResponderExcluirmais poesia?...
Muito obrigada por tão bela síntese e ricos acréscimos.
Huizinga, Winnicott e outros teóricos nos falam que o homem é antes de tudo um ser de ludismo, e que a própria cultura humana é lúdica. Até mesmo os papéis sociais são "jogos" criados e convencionados na cultura, sendo portanto brincos humanos.
Bom demais a sua presença, agradeço.
Aqui as portas estarão sempre abertas para todos vocês. Pois, esse espaço é um caldeirão de coisas úteis e inúteis, sérias e não-sérias...
Beijos e muito obrigada a todos!
H.F.
Mais uma vez, Parabéns! Acertou na mosca. Você tem uma sensibilidade refinada e garimpa com maestria as sendas poéticas. Um time muito bom você conseguiu reunir, com estilos diferentes e contundência.
ResponderExcluirLau Siqueira é um grande poeta, um inventor poético.
Os outros três também são muito bons. Gostei de ler que "o espaço lúdico permite ao indivíduo criar e entreter uma relação aberta e positiva com a cultura".
Você tem razão, os poemas são "brincos confeccionados para olhos, mãos e ouvidos adultos".
Obrigado por abrir caminhos.
Augusto.
Augusto,
ResponderExcluirsua visita e generosos comentários muito me alegraram. Fico imensamente feliz com as suas expressivas palavras. Volte sempre.
Forte abraço,
H.F.
Hercília, minha querida amiga de hoje e sempre.
ResponderExcluirComo pude deixar de comentar esse diamante de post???
Olha, todos os textos dos Artistas citados deveriam permear as salas de aula desse Brasilzão. Do Fundamental ao Superior. Repito aqui o que comentei no artigo sobre o Poeta Assis de Mello.
Mais que parabéns a todos vocês.
Taninha