sexta-feira, 3 de outubro de 2008

PERDIDOS & ACHADOS: Liberdade, Evasão e Consciência na Virtualidade


“A Internet facilita a informação, minimiza fronteiras, permite a troca de experiências, saberes, poéticas”...

A frase acima, tanto quanto panfletária, parece estabelecer um consenso sobre o meio de comunicação virtual. Isso porque, grosso modo, a possibilidade de acesso, interação e aprendizado, sem dúvida, é uma das maiores conquistas da humanidade, na chamada Era Virtual, com a Rede Mundial de Comunicações.

Até bem pouco tempo, coisas que imaginávamos apenas através das páginas dos livros e sequer pensávamos possíveis de concretude, hoje são passíveis de realização: viajar além-mar, conhecer lugares e pessoas; interagir com diversas línguas e dialetos; obter informações e confrontar, sadia e sabiamente, diferentes pontos de vista... Enfim, ter e oferecer acessibilidade, partilhar e transitar entre linguagens e culturas.

Bem... eu poderia passar horas destacando as maravilhas da Rede, assim como apontar uma dúzia e meia de prejuízos... Porém, uma das coisas que acho incrível na Internet é a possibilidade de tornar o impossível crível; ou seja, a natureza lúdica que envolve a linguagem virtual, a produção, a circulação e aquisição de saberes.

Segundo Huizinga (2000)[1], o homem é um ser ludens. A linguagem, as artes, a poesia, os ensinamentos, os diversos produtos culturais criados, historicamente, pelos homens, bem como os diferentes papéis sociais, são jogos produzidos na cultura. Todavia, há jogos que arrebatam a alma, pois elevam a ludicidade contida na essência humana, envolvendo os sujeitos numa atmosfera de prazer, extravasamento e plenitude.

Por isso, o jogo, apesar de ser considerado uma “coisa não-séria”, é uma atividade encarada com muita seriedade pelo participante; tendo em vista que uma das características formais do jogo é exatamente a consciência. O jogador tem clareza que essa atividade se distingue das “coisas sérias” da vida “real”; muito embora, vivencie com “liberdade”, “seriedade” e “ordem” essas experiências.

Creio que os princípios apresentados por Huizinga no livro Homo Ludens (2000), são apropriados para refletir o fenômeno de sedução que paira na virtualidade; já que - na Internet - as imagens, metáforas, jogos lingüísticos, máscaras, personas, etc., contribuem para envolver o internauta num misto de magia, fantasia e encantamento, tal qual a sensação produzida no ser do leitor ao apreciar e buscar decifrar a linguagem poética.

Para Huizinga (2000), toda expressão abstrata se constitui uma metáfora que é, sobretudo, jogo de palavras. O Homem ao brincar com as palavras distingue, define, constata a natureza das coisas, elevando-as ao domínio do espírito que dá expressão à vida. E, “[...] ao dar expressão à vida, o homem cria um mundo poético, ao lado do da natureza” (HUIZINGA, 2000, p. 8).

A linguagem na Internet também se realiza por um sistema verbal e comporta jogos entre palavras, imagens, sentidos. Pode-se entender que ela seduz e remete o homem ao seu plano espiritual, agindo sob a esfera lúdica de sua constituição.

Particularmente, a linguagem virtual age em minha subjetividade como perdição e achado. "Perdição" porque me sinto atraída pelas palavras, cores, sons, imagens... em um ambiente de fartura estética, de liberdade, evasão e intersubjetividade. "Achado" porque, mesmo em meio a toda essa sedução, estou constantemente renascendo, ampliando conhecimentos e também abrindo portas para outrem. Estou consciente de que as sensações de prazer, extravasamento e reencontro com a minha “infância adormecida[2]” também repercutem simbolicamente sob a minha vida cotidiana, tornando-me um ser humano intelectual, moral e espiritualmente melhor. E isso se deve ao aprendizado onírico, simbólico, estético.

Ler um texto, realizar pesquisas, localizar lugares, interagir com pessoas, etc., tudo isso serve para ampliar a minha visão de mundo e também delimitar modos de ação. Muitas das coisas que consegui realizar ultimamente só foram plausíveis graças a existência da Internet; como, por exemplo, adquirir obras raras de Cecília Meireles no gênero Literatura Infantil.

A minha escrita também tem se aprimorado a partir da boa convivência com poetas, escritores e pesquisadores de vários recantos do Brasil e de Portugal e, com essa interação, o compartilhamento de textos e múltiplas linguagens. O recebimento de e-mails, comentários nos blogs, tópicos nas comunidades ou até mesmo de um scrap no Orkut também contribui para a minha contínua formação. E o melhor de tudo isso é que essa aprendizagem se reveste de um sentido especial, já que acontece em um ambiente de alegria, liberdade e beleza.

Creio que aquilo que estudamos com maior vontade e interesse opera maiores modificações em nosso ser; muitos filósofos acenaram para essa realidade. Por esse motivo, lamento profundamente que alguns internautas usem o meio para prejudicar outros, e, com isso, minimizem as próprias oportunidades de crescimento. A linguagem na virtualidade, para mim, significa ampliação da competência imaginativa; e, a imaginação significa a faculdade de prever possibilidades.

Quando estou realizando uma atividade na Internet, seja pesquisando, escrevendo, comentando textos ou contemplando alguma paisagem difusa de algum artista “rubro”, sinto-me “perdida-mente-achada” nas linhas. Por essa razão, há algum tempo atrás, compus um poema que trata desse fenômeno; e, como palavras finais, deixo essa reflexão a todos os leitores do Novidades & Velharias e, também, do HF diante do espelho:


Perdidos e Achados[3]


Busco me achar
Nas imagens deformadas.
Busco me perder
Nas tuas veredas perfeitas.


Busco apenas enxergar
A tua face morta na margem.
Posto, sei, é muito tarde
Para qualquer enquadro na trave.


Busco viajar
Entre esferas e esquadros.
Busco suprimir
O que há em nós de extrato.


Busco entrever
Qualquer possibilidade de diálogo.
Busco renascer
Em meio aos perdidos e achados.


Busco qualquer discurso
Seja: quimérico, ilusório, abstrato.


Busco um pôr-do-sol
Que aja em nós
Como punhada de anzol.


Busco trafegar
Entre colunas além-mar.
Busco contemplar
A luz que faz questão de se esconder.


Busco vivificar
Um poema fácil de se ler.

Busco reconhecer
Um idioma para me atar.


Busco uma racionalidade
Fácil de sistematizar.
Busco uma animalidade
Difícil de se desenhar.


Busco um país
Que me pareça sólido, ora triz
Busco um neo-idílico feliz
Com a quimera, as trevas
E a luz néon de um antigo Paris.


Busco simplesmente...
O essencial em Portugal
Compreender o porquê
De nascermos simplesmente
Tão animal e tão desigual
E entender por quê:
- O Bem, às vezes, reveste-se de Mal.


Notas


[1] HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Perspectiva: São Paulo, 2000.

[2] Expressão tomada emprestada de Bachelard (1978, 1988) para se referir à experiência estética. Ver: BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Párdua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. E, BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978, p. 181-354.

[3] FERNANDES, Hercília. Perdidos e achados. In: ______. Agá-Efe: entre ruínas & quimeras. Natal-RN: Natal Gráfica, 2006, p. 70.


Ilustrações: Marc Chagall.