quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Virada pra lua: a poesia de Maria Paula Alvim



De Adélia Prado à Líria Porto, salvas as singularidades de cada universo de criação, poder-se-ia elucidar que a poesia mineira elabora por mulheres apresenta uma característica notadamente comum: a sutileza na expressão feminina que direciona, poeticamente, o olhar às coisas circundantes na natureza e ao cotidiano social-humano.
A linguagem geralmente clara, sem excessos de artifícios, portanto não mergulhada na efemeridade e/ou obliquidade dos simbolismos, desenvolve com perspicácia, sentimento, humor e ludismo assuntos recorrentes ao ser e ao estar no mundo.
É nesse horizonte de contemplação que se vislumbra a criação poética da poetisa mineira Maria Paula Alvim, idealizadora e autora do espaço virtual Literal-mente.
Maria Paula nasceu e reside na capital mineira, Belo Horizonte-MG. É médica patologista clínica, com pós-graduação em Gestão Estratégica. Possui uma empresa na área de gestão em saúde onde presta serviços a hospitais, clínicas e consultórios. Além disso, leciona em duas instituições de ensino superior.
Na atividade literária desenvolvida na Web, a poetisa das minas gerais atua em vários celeiros poéticos, donde se destacam o Maria Clara: simplesmente poesia, projeto voltado para apreciação de poesia feminina, e O Gato da Odete, espaço que reúne múltiplas linguagens.
Em seu celeiro poético Literal-mente, a poetisa, fazendo referências às suas origens, declara: “O sol estava em câncer, ascendente em libra, quando nasci, virada pra lua. De herança, o gosto pelas palavras”.
O primor à palavra, à seleção e combinação entre signos, o humor, à graça e à ludicidade, à sonoridade e o movimento rítmico, são atributos de composição que revelam o bom relacionamento do artista com a arte da leitura, o seu universo de experiências com a linguagem literária e a emoção estética.
Nesse sentido, a poesia de Maria Paula se apresenta rica em linguagens e conteúdos; propõe entrecruzamentos de referências e, simultaneamente, materializa uma poética essencialmente feminina, intuitiva, criativa e dinâmica. Esboçando uma criação poética "virada pra lua", conforme próprio dizer da autora, porém edificada em solo firme.
Essas qualidades podem ser apreciadas em Mulheres tônicas, onde a poetisa verbaliza, em 5 (cinco) atos, a intensidade do sentir do eu-feminino que, apesar da diversidade de contextos, atribui às experiências cotidianas enorme tonicidade. Para tanto, a autora não economiza o uso de proparoxítonas que, além de combinar linguagem ao tema proposto, atribuem sonoridade, ritmo e sentidos aos versos.
Passemos à leitura de “Cândida, a Médica”, ato que compõe Mulheres tônicas:

Era a tímida típica, estrábica, pálida e asmática. Espírito ético, pródigo.
Engolia críticas e sapos pétricos. Máscara pacífica.
Apesar da sólida clínica, lágrimas a faziam líquida. Náufraga sem fôlego.
Morreu de cálculo nefrético crônico. Trágica estatística, a propósito.

O apreço à língua, às possibilidades morfológicas, sintáticas e semânticas que as palavras são capazes de oferecer ao poeta, são qualidades da poesia “virada pra lua” de Maria Paula, que, não se distanciando da beleza poética, explora com inteligência e maestria o jogo, o humor e a ludicidade dos signos. Essas características são perceptíveis em Sequela, poema que compõe a série Ao pé da letra:

consequência tinha trema
quando ele se foi, sequioso
tremi

na sequência

sigo só
ô sequidão

Além do ludismo, da metalinguagem, do uso de rimas, sílabas tônicas e aliterações, a poesia de Maria Paula também perpassa as linhas da melancolia e da lírica amorosa, revelando o manancial “lunar” de contemplação do eu-lírico feminino que, em sua poesia, já nasceu virada pra lua, entretanto aprimorada pela soma de experiências com a arte de versejar.
Fiquemos com a leitura de mais dois poemas da autora:



Momento retrô

o que mais me dói agora

é ver esse infinito amor findado
é não cruzar teu olhar de outrora
agora que me conjugas passado
(perdido, posto, finado)

o que mais me dói agora
da garganta por um nó te prendo
do corpo pelos poros me escapas
agora a vida insone me apavora
(meu sonho, o teu devora)

receio que o que mais me dói agora
é perceber que na madrugada fria
só lembranças me farão companhia
agora que a ausência de ti vigora

no fundo, sinto que o que mais dói agora
é pressentir as propostas sem propósito
consentir na espera que desespera
agora que sei que a paz inda demora

o sonho acabou, te pergunto ciente
como sublimar o sentir que evapora
peço que esclareças antes de ir embora
a mim, que só te sei conjugar presente

by Maria Paula Alvim

Ah, se não fosses casada

Ah, quem me dera não fosses casada
Com esse belicoso aventureiro
Eu enfrentaria íngreme escalada
E - milagre! - me terias inteiro

Dar-te-ia a mais fulgorosa estrela
Clamaria versos para enlevá-la
Fuzilaria os outros só pra tê-la
E sentir o olor que teu lume exala

Jamais em ti eu pisaria atroz
Nem soltaria fogo pelas ventas
Verias um vulcão dentro de nós
De derreter até massas cinzentas

Nova, te encheria com meu ardor
Num resplendor de beleza crescente
Prenhe, minguar-te-ia acolhedor
À míngua, começarias novamente

Quando viesses nua, qual clarão
Amada, não fartaria de olhar
Lua, se te separares do dragão
São Jorge deixa a gente namorar?

by Maria Paula Alvim




*Poemas disponíveis no blog da autora, Literal-mente, e no Maria Clara: simplesmente poesia.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Adélia Prado: liberdade à voz feminina



Uma das maiores representantes da literatura feminina brasileira é a poetisa e escritora mineira Adélia Prado (1935)[2]. Sua voz despojada, simples, direta, e, simultaneamente, lírica, compõe marcas que definem o estilo incontestável da autora dentro do panorama atual da poética feminina.

A expressão lírica da poetisa, no entanto, não se apresenta carregada por sentimentalismos piegas - ao contrário! –, expande-se por meio de uma poética voltada para o conhecimento do eu, o questionamento do real e os valores formadores da sociedade.

A condição da mulher, as exigências sociais em torno das atribuições femininas e a missão humano-artística abraçada pela poetisa são elementos desencadeados por seu lirismo objetivo e, ao mesmo tempo, profético. Como se podem observar nesses traços:


Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

(PRADO, Adélia in: Com licença poética).


O amor romântico e os ideais utópicos consolidados a partir da ótica e conquista masculina servem-lhe de tessitura para a sua composição questionadora, sobretudo no tocante aos valores herdados ainda da tradição patriarcalista, paternalista e sexista que conferem ao gênero masculino a liberdade e o domínio nas relações afetivas e sócio-humanas; e, às mulheres, a contenção e a abnegação aos sentimentos e aos apelos sensuais.

A autora, - com a suavidade que é lhe própria e contrariando as convenções impostas – indaga o amor romântico e apresenta certa preferência pelo amor real; àquele que, desraigado de ilusões, baseia-se no respeito mútuo, na liberdade de expressão e na igualdade entre os gêneros. Visto que, no dizer da poetisa, o amor feinho


não olha um pro outro.

Uma vez encontrado, é igual fé,

não teologa mais.

Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo

e filhos tem os quantos haja.

Tudo que não fala, faz.

Planta beijo de três cores ao redor da casa

e saudade roxa e branca,

da comum e da dobrada.

Amor feinho é bom porque não fica velho.

Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:

eu sou homem você é mulher.

Amor feinho não tem ilusão,

o que ele tem é esperança:

eu quero amor feinho.

(PRADO, Adélia in: Amor feinho).


Com o olhar voltado à realidade e às relações sócio-humanas, indagando os valores morais, as normas e convenções da sociedade, Adélia também expressa as inquietações filosóficas do seu eu-lírico e reflete o processo de mecanização dos sujeitos; que, sofrendo o peso das atribuições da vida moderna, desvinculam-se dos sentimentos espirituais, por ora essenciais à vida humana, conforme se observa em “seu” ensinamento poético:


Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo.

Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,

ela falou comigo:

"Coitado, até essa hora no serviço pesado".

Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.

Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo.

(PRADO, Adélia in: Ensinamento).


Por essas e outras razões, a poética adeliana exprime, além dos sentimentos profundos do eu-lírico, uma concepção de homem e sociedade que busca romper com os valores ideológicos então enraizados na realidade brasileira, dentre eles a crença nas “verdades” provenientes da ciência e, sobretudo, as exigências em torno do papel da mulher; isto é, de sua função social no emaranhado das relações humanas.

Função que a própria Adélia profetizou enquanto “bandeira”. Já que, desde logo, a autora apresentara consciência do fardo que a sua condição de mulher a faria carregar; porém, sem desmerecer a sua luta, então aceita enquanto “sina”.

Missão poética capaz de fundar “linhagens e reinos”, tendo em vista que a mulher, na expressão da poetisa, apresenta-se como um ser “desdobrável” e, Adélia, sem pretender ser autoritária, diz: “Eu sou”!



Aliteração

à Adélia Prado[3]


A poesia catártica,

galinha depois do golpe esperto

no pescoço pelado a jorrar -,

seleciona ritmos das internas obviedades,

depõe o azinhavre ao retirar

rebentos do arrisco.


Arisca, cisca a esquecer-se dos

que lhe penhoraram o olvido.

Pouco era o doce que acabado

derreteu-se no acalanto das burcas,

Nossas Senhoras túnicas, buscas desertificadas,

irmãs que apontam à submersão.


Avizinhada do alento,

certa saudade rompe o jugo da face inexistente,

the non-existing face a emergir do passado,

rosto púbere no tempo cristalizado,

efígie que não reconforta,

mas acende o artefato.


Rogério Santiago



SUGESTÕES DE LEITURA: Ensaios, crítica e fortuna literárias

ENTREVISTA

CONSULTAR BIOGRAFIA


NOTAS


[1] Texto originalmente publicado, no Novidades & Velharias, em 28 fev. 2008. Para construção do artigo utilizou-se, na época, das fontes indicadas como “sugestão de leituras”. A bibliografia e os poemas da autora foram extraídos do site Jornal de Poesia e do Projeto Releituras.

[2] Adélia Luzia Prado Freitas, filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa, nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935.

[3] Além de dedicar o poema Aliteração à poeta Adélia Prado, Rogério Santos ofereceu o texto a André Adriano Brun, autor do artigo Uma estética do equilíbrio: o motivo feminino em Adélia Prado, e, à autora deste artigo, Hercília Fernandes.