
o que mais me dói agora
Uma das maiores representantes da literatura feminina brasileira é a poetisa e escritora mineira Adélia Prado (1935)[2]. Sua voz despojada, simples, direta, e, simultaneamente, lírica, compõe marcas que definem o estilo incontestável da autora dentro do panorama atual da poética feminina.
A expressão lírica da poetisa, no entanto, não se apresenta carregada por sentimentalismos piegas - ao contrário! –, expande-se por meio de uma poética voltada para o conhecimento do eu, o questionamento do real e os valores formadores da sociedade.
A condição da mulher, as exigências sociais em torno das atribuições femininas e a missão humano-artística abraçada pela poetisa são elementos desencadeados por seu lirismo objetivo e, ao mesmo tempo, profético. Como se podem observar nesses traços:
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
(PRADO, Adélia in: Com licença poética).
O amor romântico e os ideais utópicos consolidados a partir da ótica e conquista masculina servem-lhe de tessitura para a sua composição questionadora, sobretudo no tocante aos valores herdados ainda da tradição patriarcalista, paternalista e sexista que conferem ao gênero masculino a liberdade e o domínio nas relações afetivas e sócio-humanas; e, às mulheres, a contenção e a abnegação aos sentimentos e aos apelos sensuais.
A autora, - com a suavidade que é lhe própria e contrariando as convenções impostas – indaga o amor romântico e apresenta certa preferência pelo amor real; àquele que, desraigado de ilusões, baseia-se no respeito mútuo, na liberdade de expressão e na igualdade entre os gêneros. Visto que, no dizer da poetisa, o amor feinho
não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.
(PRADO, Adélia in: Amor feinho).
Com o olhar voltado à realidade e às relações sócio-humanas, indagando os valores morais, as normas e convenções da sociedade, Adélia também expressa as inquietações filosóficas do seu eu-lírico e reflete o processo de mecanização dos sujeitos; que, sofrendo o peso das atribuições da vida moderna, desvinculam-se dos sentimentos espirituais, por ora essenciais à vida humana, conforme se observa em “seu” ensinamento poético:
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
(PRADO, Adélia in: Ensinamento).
Por essas e outras razões, a poética adeliana exprime, além dos sentimentos profundos do eu-lírico, uma concepção de homem e sociedade que busca romper com os valores ideológicos então enraizados na realidade brasileira, dentre eles a crença nas “verdades” provenientes da ciência e, sobretudo, as exigências em torno do papel da mulher; isto é, de sua função social no emaranhado das relações humanas.
Função que a própria Adélia profetizou enquanto “bandeira”. Já que, desde logo, a autora apresentara consciência do fardo que a sua condição de mulher a faria carregar; porém, sem desmerecer a sua luta, então aceita enquanto “sina”.
Missão poética capaz de fundar “linhagens e reinos”, tendo em vista que a mulher, na expressão da poetisa, apresenta-se como um ser “desdobrável” e, Adélia, sem pretender ser autoritária, diz: “Eu sou”!
Aliteração
à Adélia Prado[3]
A poesia catártica,
galinha depois do golpe esperto
no pescoço pelado a jorrar -,
seleciona ritmos das internas obviedades,
depõe o azinhavre ao retirar
rebentos do arrisco.
Arisca, cisca a esquecer-se dos
que lhe penhoraram o olvido.
Pouco era o doce que acabado
derreteu-se no acalanto das burcas,
Nossas Senhoras túnicas, buscas desertificadas,
irmãs que apontam à submersão.
Avizinhada do alento,
certa saudade rompe o jugo da face inexistente,
the non-existing face a emergir do passado,
rosto púbere no tempo cristalizado,
efígie que não reconforta,
mas acende o artefato.
Rogério Santiago
ENTREVISTA
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NOTAS
[1] Texto originalmente publicado, no Novidades & Velharias, em 28 fev. 2008. Para construção do artigo utilizou-se, na época, das fontes indicadas como “sugestão de leituras”. A bibliografia e os poemas da autora foram extraídos do site Jornal de Poesia e do Projeto Releituras.
[2] Adélia Luzia Prado Freitas, filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa, nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935.