sábado, 17 de outubro de 2009

Literatura com sotaque: "português ou caipirês?"

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A poetisa e professora universitária Adriana Karnal publicou um belo artigo sobre literatura e preconceito linguístico no quadro “postagem simplesmente poesia”, no blog de poesia feminina Maria Clara.
No artigo “Literatura com sotaque”, Adriana analisa o fenômeno da variedade da língua e a marginalidade linguística a que estão submetidos os grupos sociais economicamente desfavorecidos, os chamados “sem língua”.
A partir de uma reflexão pautada nos estudos realizados por Marcos Bagno, dentre os quais se destaca o livro “Preconceito Linguístico: o que é, como se faz”, a poetisa reflete os mitos que se convencionam na sociedade em razão das diferenças sociais, regionais, dialetais; e a controversa articulação entre oralidade e escrita normativa.
Por meio de uma argumentação fundada na sociolinguística e da análise de aspectos imbricados em textos literários, em que se destaca um poema do poeta portuquês Nilson Barcelli, Adriana nos leva a preciosas reflexões sobre o uso da língua; acenando, inclusive, para as controvérsias acerca do novo acordo ortográfico da língua portuguesa. Em suas palavras: “Ainda que as novas regras tenham sido introduzidas na escrita da língua portuguesa, elas ainda não conseguiram ser incorporadas pelos falantes, muito em razão de a escrita refletir a pronúncia”.
Os argumentos e análises enunciados por Adriana Karnal reportaram-me a um texto de Dad Squarisi que discute a língua portuguesa praticada pelos brasileiros. O texto reflete, no dizer de Bagno, "o círculo vicioso do preconceito linguístico", que tem raízes em interesses hegemônicos e se legitima por meio da gramática normativa da língua culta. Mas, sem mais preâmbulos, passemos à escrita; que cada leitor realize as suas próprias acepções...
Português ou Caipirês?[2]

Dad Squarisi

Fiat Lux. E a luz se fez. Clareou este mundão cheinho de jecas-tatus. À direita, à esquerda, à frente, atrás, só se vê uma paisagem. Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros desconfiados. Um - só um - iluminado. Pobre peixinho fora d’água! Tão longe da Europa, mais tão perto de paulistas, cariocas, baianos e maranhenses.
Antes tarde do que nunca. A definição do caráter tupíniquim lançou luz sobre um quebra cabeça que atormenta este país capial desde o século passado. Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas.
Falamos o Caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, nós era, eles era. Por isso não fazemos concordância em frase como "não se ataca as causas" ou "vende-se carros".
Na língua de Camões o verbo está enquadrado na lei da concordância. Sujeito no plural? O verbo vai atrás. Sem choro nem vela. O sujeito causas e carros estão no plural. O verbo, vaquinha de presépio, deveria acompanhá-los. Mas se faz de morto. O matuto, ingénuo, passa batido. Sabe por quê?.
O sujeito pode ser ativo ou passivo. O ativo pratica a ação expressa pelo verbo. Os caipiras (sujeito) desconhecem (ação) o outro lado. Passivo, sofre a ação: o outro lado (sujeito) é desconhecido (ação) pêlos caipiras. Reparou? O sujeito - o outro lado - não pratica a ação.
Há duas formas de construir a voz passiva:
a- com o verbo ser (passiva analítica): A cultura caipira é estudada por ensaístas. Os carros são vendidos pela concessionária.
b- Com o pronome se (passiva sintética): estuda-se a cultura caipira. Vendem-se carros. No caso, não aparece o agente. Mas o sujeito está lá. Passivo, mas firme.
Dica: use o truque dos tabaréus cuidadosos: troque a passiva sintética pela analítica. E faça a concordância com o sujeito. Vende-se casas ou vendem-se casas? Casas são vendidas (logo; vendem-se casas). Não se ataca ou não se atacam as causas? A causas não são atacadas (não se atacam as causas). Fez-se ou fizeram-se a luz? A luz foi feita (fez-se a luz). Firmou-se ou firmaram-se acordos? Acordos foram firmados (firmaram-se acordos).
Na dúvida, não bobeie. Recorra ao truque. Só assim você chega lá e ganha o passaporte para o mundo. Adeus, Caipirolândia.

Notas
[1] Vale a pena ler/reler o texto da poetisa e professora Adriana Karnal. Para tanto, visite o “Maria Clara: simplesmente poesia”.
[2] Texto extraído de: BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000. Arte disponível no Google Imagens.

domingo, 11 de outubro de 2009

Por cima de ervas & pedregulhos


Camilo quis sinceramente fugir, mas não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo. Fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. (Machado de Assis, in: A cartomante, 2007, p. 351-358).


Dentre as temáticas que compõem a literatura brasileira destaca-se a trama do “triângulo amoroso”.

Um dos escritores brasileiros que mais desenvolveu o tema foi Machado de Assis (1839-1908), que analisara os conflitos humanos, as máscaras sociais e os embates entre valores e convenções da sociedade brasileira no século XIX aos apelos do amor sensual.

Essa realidade pode ser observada no romance Dom Casmurro, onde Machado desenvolve todo um jogo ficcional-narrativo entre os valores cristãos burgueses e os conflitos provenientes do amor romântico.

Através das ânsias e ações das personagens Bentinho, Capitu e Escobar, o escritor coloca em xeque as convenções sociais comuns à sua época; que impunham arranjos de casamento entre famílias por interesses comuns e não por laços de afetividade.

No conto A cartomante, o escritor também desenvolve a trama do triângulo amoroso. Por meio das personagens Vilela, Rita e Camilo, Machado apresenta perfis psicológicos densos e situações intensas acerca das relações entre gênero e, especialmente, da imagem feminina.

Na obra machadiana é comum a aparição de personagens mulheres dissimuladas, interesseiras, traiçoeiras, oblíquas... o que demonstra a visão patriarcal-cristã da época que confere ao feminino os atributos de Eva e/ou serpente...

Para Luft (1991), o escritor transfere às personagens femininas os seus próprios problemas existenciais: ambição, desvencilhamento com o passado, peso da hierarquia social... Esses conflitos se podem observar nas personagens Guiomar e Helena, ambas da primeira fase do escritor: a romântica.

Por outro lado, segundo destaca Bergamini (2008, p. 2), “o escritor via a mulher como um elemento social que maneja e comanda, sendo astuciosa e cerebral, divergente, nesse ponto, da mulher romântica”.

Essa última argumentação condiz à segunda fase do autor: a do realismo. Nessa fase destaca-se o autor analista, observador, frio no raciocínio, na exposição de fatos que “retrata a mente humana”, analisando-a com ironia e humor (LUFT, 1991, p. 578).

No tocante à temática do triângulo amoroso, Machado em Dom Casmurro e em A Cartomante desenvolve as narrativas sob duas perspectivas. Em Dom Casmurro, o autor deixa à livre imaginação do leitor o desfecho da narrativa: a menina de “olhos de ressaca” e/ou de “cigana oblíqua e dissimulada” traiu ou não Bentinho? Eis um conflito que inquieta gerações de leitores!

Para Bergamini (2008), devido Machado desenvolver a trama em uma temporalidade psicológica acaba por provocar a ambiguidade, levando o leitor a dúvidas sobre os fatos; tendo em vista que: “O conto mostra como o desejo pode abrir brechas em situações de opressão. Nada acontece objetivamente entre os dois” [entre Capitu e Escobar]. Todavia, “onde nada aconteceu, tudo pode estar acontecendo subjetivamente” (BERGAMINI, 2008, p. 11).

em A Cartomante, o triângulo amoroso é descrito objetivamente por meio da voz de um narrador onisciente que descreve uma situação de adultério entre uma mulher casada que se apaixona pelo amigo de infância do marido. Entretanto, apesar do adultério consistir o centro da narrativa, para Bergamini (2008, p. 11) o triângulo amoroso é mais um pretexto para o escritor revelar os “dilemas da consciência, da relatividade dos valores, bem como das fraquezas morais a que todos estão sujeitos”.

Também na poesia, a temática do triângulo amoroso perpassa as linhas dos poetas, sendo uma problemática bastante explorada. Tal realidade pode ser observada na produção poética atual através dos dizeres poéticos femininos na Blogosfera. Leiam-se dois textos, cujas vozes líricas expressam as ânsias em torno da problemática in foco:



ordi(bi)nário


Amavam-se por adição

Na cama subtraíam as diferenças

Dividiam os prazeres

Multiplicavam os gozos


A relação não durou...

Ele se envolveu com a Álgebra

E mudou seu logaritmo


Ela nunca o perdoou por isso

Seu coração ficou partido em frações

Potencializou a raiva por muito tempo

E até hoje não conseguiu extrair a raiz do problema


Wania, in: Encantaventos



amor 4X4


meu coração é 4X4

simples puxadinho em morro

................................................condenado

...........................mesmo quando desmorona

.............................sempre cabe mais um

em vão ensolarado


.............................................amor feijão com arroz...


Hercília Fernandes, in: HF diante do espelho


Conforme se pôde ler no poema ordi(bi)nário, da poetisa Wania de Porto Alegre-RS, a relação entre amantes é descrita como harmoniosa até entrada de uma terceira pessoa, ou melhor de uma "Álgebra", no poema-equação; surgindo conflitos entre pares que nem sempre podem encontrar “a raiz do problema”...

Em o texto amor 4X4, evidencia-se também a expressão sutil de uma situação triangular, onde a escrita poética acena para os conflitos e dilemas humanos em razão das intempéries amorosas.

Em ambas as situações, o que se percebe é que os sentimentos, sensações e analogias realizadas pelas vozes líricas apontam para-além das aparências e revelam, “por cima de ervas e pedregulhos”, a própria obliquidade inerente à condição humana.



Notas


[1] Texto postado, primeiramente, no blog de poesia feminina “Maria Clara: simplesmente poesia”. Nesta postagem, o artigo sofreu algumas alterações.

[2] Arte extraída do Google Imagens.

Referências


BERGAMINI, Denise Lopes. As mulheres no conto de Machado de Assis. In: Darandina Revista Eletrônica. Programa de Pós-Graduação de Letras – UFJF, v. 1, n. 2, 2008, p. 1-17.


LUFT, Celso Pedro. Novo Manual de Português: Redação, Gramática, Literatura, Ortografia Oficial, Textos e Testes. São Paulo: Editora Globo, 1991.


MACHADO, Assis de. A Cartomante. In: ______. 50 contos. Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das letras, 2007.