domingo, 27 de junho de 2010

O outro lado da fotografia em "Mórbido Carrossel"


O conto, segundo teorização de Moisés (2001, p. 64), pode ser associado à fotografia. O contista se esforça em “lograr um flagrante da realidade, transfundir em palavras a intriga condensada, aparentemente estática, da fotografia”.
Como forma literária, o conto compõe uma narrativa unívoca, cuja característica central condiz à dramaticidade. Nas palavras do crítico: “O conto é, pois, uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação” (MOISÉS, 2001, p. 39).
Isso significa que “o núcleo do conto” é representado por uma situação-conflito possuidora de dramaticidade, cujas demais coisas, existentes na narrativa, atuam como “satélites”, já que não contêm força dramática.
O êxito ou o insucesso do conto, segundo Moisés, se evidencia na articulação ou desarticulação entre o núcleo dramático e o seu envoltório não-dramático. Um e outro podem formar-se dos mesmos materiais narrativos (personagens, ação, espaço, tempo, etc.), mas os componentes do núcleo ostentam sentido dramático, ou seja, empenham-se na exposição de um conflito, ao passo que os ingredientes periféricos não exibem conotações dramáticas.
Dentro dessa perspectiva de análise, o que importa em um conto são as personagens em conflito, não aquelas que se apresentam secundárias e dependentes; o espaço onde o drama se desenrola, não os lugares por onde transita a personagem, e assim por diante. Desse modo, o grande desafio do contista consiste no “jogo narrativo” que intenciona prender o leitor até o desenlace, que constitui, geralmente, um “enigma”.
Tendo em vista as elucidações feitas por Moisés (2001) sobre a teoria do conto, busca-se, neste artigo, evidenciar a literariedade contida no texto “Mórbido Carrossel”, de autoria da jovem poeta e escritora Lara Amaral, idealizadora do espaço literário Teatro da Vida. Passemos à leitura do conto:

Lara Amaral

Já possuía mais frieza para olhar pessoas mortas. Ossos do ofício. Aquela figura pendurada no ventilador do quarto com uma corda no pescoço já não era uma cena tão sinistra como seria quando começou no emprego há 11 anos. Até coisas morbidamente hilárias passavam por sua cabeça ao imaginar a cena. Poderia ter dado errado, por exemplo, o homem, na hora de subir na mesa, poderia ter escorregado e esfolado o joelho, torcido o tornozelo, caído numa risada desesperada e até desistido do feito; ou na hora de pular da mesa, o ventilador poderia ter se desprendido do teto e o homenzarrão estaria ali chorando agachado no chão pensando o tanto que era imprestável até para se suicidar. Mas não, no caso, havia dado certo, se puder se referir a tal fato dessa forma... Enquanto o corpo balançava quase imperceptivelmente, ele imaginou se o ventilador pudesse ser ligado e, ao invés de parecer uma carne dependurada num açougue, o homem ali pareceria uma das hastes daqueles carrosséis de filmes antigos, que giram como se soltos no ar... como seria estar num carrossel daqueles? Bem, com certeza não seria a mesma sensação que lhe passava aquela cena nada pictória que estava a sua frente. Ao se aproximar mais do corpo, ele percebe brilhar ali no chão, com o seu ar clichê e magistral: o bilhete. Os dizeres borrados e a caligrafia tremida não deixavam dúvidas de que aquele foi o último legado do homem do ventilador. Leu só por desencargo de consciência, saberia mais ou menos o que estaria escrito: coisas que ficaram por fazer, por decidir, por sentir... coisas árduas demais de se verbalizar, e que só surtiam efeito por estarem impressas ali... coisas primordiais que foram escolhidas por último. Mas o fim que chegava por uma escolha deveria ser amarrado de alguma forma, o fecho precisava de toda a sua dramaticidade, e o bilhete era a chave, as reticências, o ponto final; e o homem ali que o lia, sem prestar muita atenção, pensava mais em como seria seu próprio encerrar de palavras não ditas.


Em Mórbido Carrossel, conforme se pôde ler, há a existência de duas personagens: o narrador e o suicida. A ação dramática e/ou conflito narrativo se expande internamente, sendo descrita por meio do diálogo indireto livre proposto pelo narrador onisciente.
O conto principia com frases afirmativas que abrem perspectivas à dramaticidade: “Já possuía mais frieza para olhar pessoas mortas. Ossos do ofício”. As frases iniciais, assim como a impressão fotográfica, surpreendem o leitor pelo grau de realismo e, simultaneamente, produzem suspense, seduzindo-o a adentrar no núcleo central da trama que gira em torno da imagética do ventilador que, no drama, se transfigura em carrossel.
Pode-se dizer que o conto integra a classificação esmiuçada por Moisés (2001) de “conto de cenário e/ou atmosfera”, tendo em vista que a narrativa se movimenta em torno dos objetos que envolvem as supostas cenas de um suicídio; que, por sua vez, produzem conflitos à análise psicológica dos fatos elaborada pelo narrador.
Segundo Moisés, o conto de cenário e/ou de atmosfera é uma das tipologias do conto menos adotada pelos escritores. Nele, a ênfase dramática recai sobre os objetos, no cenário, no ambiente, “de modo a transformá-lo no verdadeiro protagonista do conto” (MOISÉS, 2001, p. 77).
Em Mórbido carrossel percebe-se que o narrador encaminha a descrição dos fatos aos objetos que tonificam suas impressões sobre as ações da personagem suicida, dentre eles a corda, o ventilador, o carrossel, o bilhete. Todavia, o elemento central de dramaticidade consiste o ventilador, já que assume dupla função dentro do ângulo de visão em que se coloca o olhar do narrador; sendo, portanto, objeto núcleo da trama.
Ligados à figura do ventilador, o espaço ficcional comporta dois cenários, um externo - o quarto do suicida e as coisas que o comportam – e outro interno – o universo psicológico do narrador. Assim, apesar de a trama se desenvolver em torno do suicídio – “que, no caso, havia dado certo...” -, a personagem central da narrativa condiz à pessoa do narrador, considerando que a situação-conflito não diz respeito ao suicídio em si, mas ao conflito interno experimentado pelo narrador ao conferir outro sentido ao objeto em que se flagra/retrata o suicídio, ou seja, ao ventilador. Leia-se a passagem:

Enquanto o corpo balançava quase imperceptivelmente, ele imaginou se o ventilador pudesse ser ligado e, ao invés de parecer uma carne dependurada num açougue, o homem ali pareceria uma das hastes daqueles carrosséis de filmes antigos, que giram como se soltos no ar...

Divagando sobre a dupla face do ventilador, a voz que narra expõe uma questão existencial: “como seria estar num carrossel daqueles?.
Ao vislumbrar a imagem do ventilador enquanto “carrossel”, o narrador confere um sentido poético à cena do suicídio, acenando “ao outro lado da fotografia”, isto é, à liberdade alcançada pela alma com o desprendimento corpóreo. Nesse ponto, expressa o ângulo de visão em que coloca seu olhar, evidenciando a noção de que a aparente frivolidade da cena poderia representar não o fim da existência, mas soltura, liberdade espiritual, cujo suicídio parece consistir, no universo ficcional, uma das escolhas possíveis para se alcançar a tão almejada plenitude.
As cenas seguintes que perpassam o conto, especialmente as que envolvem a descoberta do bilhete e as impressões do narrador sobre os conteúdos de mensagem, assumem funções satélites, devido não comportarem efeito prático. Tal realidade se pode constatar no diálogo indireto proposto pelo narrador ao alegar que as coisas contidas no bilhete “só surtiam efeito por estarem impressas ali...”, isto é, por comporem, de alguma forma, a história da personagem suicida. Porém, em relação ao conflito experimentado por ele/narrador, as palavras finais do suicida pouco demonstram expressividade, tendo em vista que o narrador preocupa-se mais em descobrir “como seria seu próprio encerrar de palavras não ditas.
Nas últimas frases, o conto assume caráter metalinguístico: revela a identidade do narrador demiurgo e, simultaneamente, estabelece analogias entre a escolha do suicida aos elementos que causam dramaticidade ao texto, dentre eles a contiguidade do “enigma” que, semelhante à fotografia, depende do ângulo de visão em que se coloca o fotógrafo; ou melhor, o leitor.


Breve biografia da autora:

Lara Amaral é natural de Brasília-DF, cidade onde reside. Formada em Jornalismo, demonstra notória fecundidade imagística e esmero léxico em suas criações. Participa ativamente em vários celeiros poéticos na Web, dentre os quais se destacam o espaço pessoal Teatro da Vida e o blog/projeto voltado à apreciação de poesia feminina Maria Clara: simples mente poesia. Em sua criação literária, evidencia-se o desenvolvimento de temas fortes e intimistas, alguns deles considerados tabus sociais, tais como a doença que acomete o corpo e o espírito; a morte e o suicídio; os conflitos entre pais e filhos... mas também os desejos e os sonhos de menina. Seus temas, em geral, se expandem em linguagem poética e/ou em pequenas narrativas, tais como o conto e a crônica. Para conhecer mais sobre a sua criação literária, recomenda-se uma visita aos espaços acima mencionados. E-mail da autora: lara.amte@gmail.com


Referências:

MOISÉS, Massaud. A análise literária. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1984.
______. A criação literária: Prosa I. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.