quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Um “presente” de Vicente Franz Cecim: Poema Bilíngüe de César Vallejo


O escritor Vicente Franz Cecim, com a sensibilidade, gentileza e generosidade que lhes são próprias, ofertou-nos um “belo presente” em agradecimento à breve descrição de sua trajetória criadora, na matéria intitulada: Vicente Franz Cecim: o “Serdespanto” em Andara.

Em correspondência de e-mail[1], o escritor envia-nos um dos poemas do poeta peruano César Vallejo (1892-1938), acrescido de uma belíssima tradução, por ele próprio realizada, disponível no site O Poema.

No e-mail, o escritor paraense, precursor da “literatura fantasma”, solicita-me que o presente seja redimencionado a todos os leitores do Novidades & Velharias, em razão da boa acolhida dos textos de “Andara” no blog. Além da versão em espanhol de Vallejo e de sua tradução, o poeta anexou uma breve introdução à poesia do poeta peruano.

E, em resposta ao meu agradecimento por suas gentis palavras e ricas sugestões de leitura, Vicente Cecim expõe as convicções pessoais, evidenciando as suas concepções sobre a poética de Vallejo, onde alude que:


Hercília,
Vallejo é o nosso Whitman
[2] e tão belo quanto: poetas todos voltados para a Vida, face a face com ela.
Teus leitores que ainda não o conhecem, vão descobrir um susto.
Um abraço, Vicente
[3].


Recebamos, integralmente, os "sustos" de César Vallejo presenteados por Vicente Franz Cecim:




BREVE INTRODUÇÃO A CÉSAR VALLEJO


"Toda a vida de Vallejo é um esforço para conquistar, na própria escritura de cada poema, este alfabeto competente ou linguagem adequada: uma linguagem adequada à obscuridade da intuição, à visão das trevas não pode ser senão obscura. O poeta desce à noite e toda a noite deve ser dita no poema, o poema deve mostrá-la; ele a viu, a tocou, e pede que o escutem 'em bloco'” (Américo Ferrari. Introdução a César Vallejo: Obra Poética Completa, in: O poema):


[...] e se vi, que me escutem pois, em bloco,
se toquei esta mecânica, que vejam lentamente,
aos poucos, vorazmente, minhas trevas.
(De Panteão - César Vallejo).


POEMA BILÍNGÜE


Considerando en frío, imparcialmente...
(César Vallejo)


Considerando en frío, imparcialmente,
que el hombre es triste, tose y, sin embargo,
se complace en su pecho colorado;
que lo único que hace es componerse
de días;
que es lóbrego mamífero y se peina...

Considerando
que el hombre procede suavemente del trabajo
y repercute jefe, suena subordinado;
que el diagrama del tiempo
es constante diorama en sus medallas
y, a medio abrir, sus ojos estudiaron,
desde lejanos tiempos,
su fórmula famélica de masa...

Comprendiendo sin esfuerzo
que el hombre se queda, a veces, pensando,
como queriendo llorar,
y, sujeto a tenderse como objeto,
se hace buen carpintero, suda, mata
y luego canta, almuerza, se abotona...

Considerando también
que el hombre es en verdad un animal
y, no obstante, al voltear, me da con su tristeza en la cabeza...

Examinando, en fin,
sus encontradas piezas, su retrete,
su desesperación, al terminar su día atroz, borrándolo...

Comprendiendo
que él sabe que le quiero,
que le odio con afecto y me es, en suma, indiferente...

Considerando sus documentos generales
y mirando con lentes aquel certificado
que prueba que nació muy pequeñito...

le hago una seña,
viene,
y le doy un abrazo, emocionado.
¡Qué mas da! Emocionado... Emocionado...

(In: O poema)


..............................Considerando a frio, imparcialmente...
..............................(Tradução: Vicente Franz Cecim).


..............................Considerando a frio, imparcialmente,
..............................que o homem é triste, tosse e, no entanto,
..............................se compraz em seu peito avermelhado;
..............................que a única coisa que faz é compor-se
..............................de dias;
..............................que é lúgubre mamífero e se penteia...

..............................Considerando
..............................que o homem procede suavemente do trabalho
..............................e repercute chefe, soa subordinado;
..............................que o diagrama do tempo
..............................é constante diorama em suas medalhas
..............................e, mal abertos, seus olhos estudaram,
..............................desde distantes tempos,
..............................sua fórmula famélica de massa...

..............................Compreendendo sem esforço
..............................que o homem fica, às vezes, pensando,
..............................como querendo chorar,
..............................e, sujeito a se estender como objeto,
..............................se faz bom carpinteiro, sua, mata
..............................e depois canta, almoça, se abotoa...

..............................Considerando também
..............................que o homem é em verdade um animal
..............................e, apesar disso, ao se voltar, me dá com sua tristeza na cara...

..............................Examinando, enfim,
..............................as suas peças encontradas, sua latrina,
..............................sua desesperação, ao terminar seu dia atroz, borrando-o...

..............................Compreendendo
..............................que ele sabe que o amo,
..............................que o odeio com afeto e me é, em suma, indiferente...

..............................Considerando seus documentos gerais
..............................e olhando com lentes aquele certificado
..............................que prova que nasceu muito pequenino...

..............................lhe faço um sinal,
..............................vem,
..............................e lhe dou um abraço, emocionado.
..............................Que importa! Emocionado... Emocionado...

..............................(In: O Poema)


Para finalizar a postagem, sem, no entanto, nada concluir efetivamente, transcrevo as minhas palavras dirigidas ao escritor Vicente Franz Cecim em agradecimento aos “espantos” de presentes, por ele, encaminhados:


Querido Vicente Cecim.
Agradeço-lhe as gentilezas, indicações de leitura, seus belos e preciosos presentes.
Já tinha lido o César Vallejo em alguns sites, mas, a sua tradução somente agora tomo conhecimento. Por isso, agradeço-lhe por cuidar do crescimento afetivo, intelectual e espiritual de seus leitores; dentre os quais, passo a me incluir.
Irei publicar no Novidades & Velharias o seu diálogo com o Grande Vallejo e estenderei o presente a todos os leitores.
Um forte abraço, Hercília
[4].


Notas


[1] CECIM, Vicente Franz. Um presente para Hercília: Vallejo – um Poema bilíngüe. Hotmail, 24 fev. 2009. [Correspondência de e-mail dirigida à Hercília Fernandes].

[2] Walt Whitman (1819-1892), poeta norte-americano.

[3] CECIM, Vicente Franz. RE: Um presente para Hercília: Vallejo – um Poema bilíngüe. Hotmail, 25 fev. 2009. [Correspondência dirigida à Hercília Fernandes em resposta ao agradecimento encaminhado em 25 fev. 2009].

[4] FERNANDES, Hercília. RE: Um presente para Hercília: Vallejo – um Poema bilíngüe. Hotmail, 25 fev. 2009. [Correspondência dirigida ao escritor Vicente Franz Cecim em razão dos presentes encaminhados em 24 fev. 2009].


domingo, 22 de fevereiro de 2009

Vicente Franz Cecim: o "Serdespanto" em Andara


O escritor paraense Vicente Franz Cecim, nas palavras do poeta e jornalista Fabrício Carpinejar, é um clássico “vivo e inacabado”, considerando que a sua criação literária “foge dos esquadros, escolas literárias e questões de vestibular, gerando seus antecessores no futuro[1]”.

Segundo Carpinejar, Vicente Franz Cecim é um dos escritores responsáveis pela instauração da “literatura fantasma”, aquela que permanece continuamente se reinventando, onde a obra adentra no universo fantasmagórico e se torna “invisível”, posto que o autor transcende o conhecimento para alcançar o desconhecido. Em suas palavras:

A literatura é fantasma; a obra, invisível. Não existe fim, nem início, serpente sonâmbula que morde sua cauda. O autor recusa a prepotência e conversa nos ouvidos do leitor, pedindo conselhos e partilhando a perplexidade dos mistérios[2].

Vicente Franz Cecim, também jornalista, natural de Belém do Pará (Amazônia), desde 1979 deu inicio à criação de 11 livros, a priori publicados individualmente; e, posteriormente, reunidos em dois volumes: Viagem a Andara: o livro invisível (1988) e Silencioso como o Paraíso (1995), obras reunidas pela editora Iluminuras (São Paulo-SP). Com a publicação de Viagem a Andara, que reúne, em volume único, seus sete primeiros livros, Vicente Cecim recebe o Grande Prêmio da Crítica da APCA.

Em 2001, o escritor lança, em Portugal, Ó Serdespanto, pela editora Íman. O livro recebe, imediatamente, entusiástica receptividade da crítica lusa, tendo sido eleito uma das melhores publicações de 2001, pelo jornal O Público, de Lisboa. No Brasil, Ó Serdespanto tivera a primeira edição publicada pela editora Bertrand Brasil (Rio de Janeiro-RJ), no ano de 2006.

Em entrevista concedida a Carpinejar, disponível na Revista Agulha e no Jornal de Poesia, Vicente Cecim se autodefine um “Serdespanto”, cuja estranheza torna-o capaz de escrever “o Nada que nos escreve escrevendo a vida, as paisagens, os homens, as chuvas, o vento, as vozes das coisas, seus cantos também, através de nós[3]”. Para Vicente Cecim não é o escritor quem escreve o livro, caso o fosse seria apenas uma cópia mal concebida da grande obra que consiste a própria expressão do

Vazio que transborda. É ele que nos escreve escrevendo a vida. Eu fui sabendo disso à medida então que ia escrevendo os livros visíveis de Andara, que são os livros que escrevo, os volumes individuais da Obra, e à medida que Viagem a Andara, o livro invisível que não escrevo, Ele é um não-livro, literatura fantasma, ia se formando: ia nutrindo esses livros para que eles existissem e deles ia se desnutrindo para existir em sua não existência[4].

A criação de Vicente Cecim, sendo concebida e materializada em “literatura fantasma”, navega os labirintos do sonho, do profano, do estranhamento e do invisível em fluxo inacabável. Andara configura, então, a região-metáfora da existência, onde o escritor transfigura a Amazônia através de “Andara [que] me escreve, por isso escrevo Andara, que é a Amazônia transfigurada através de Mim[5]”.

Vejamos, em textos, o que consiste Andara e O Serdespanto de Vicente Franz Cecim:

Ó Serdespanto


Em Andara,
é quando os homens esperam um anoitecer mais
calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras de sombras

e asas de areia
vêm nos açoitar.

Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto.
Passando, pois, aquele homem a se chamar assim
Serdespanto.

Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer

Em Andara, pois. Mais um tendo vindo.
de rastros, humano.

mas depois ele já não andava mais de rastros,
esse Serdespanto.
muito alto,

ou eram as nuvens que baixavam do céu para nele roçar,

o certo é que os seus olhos atravessavam névoas, nadas. Uma neblina vaga sempre flutuando em torno de sua caixinha de osso, diz-se cabeça. Posta essa neblinazinha entre os dois buracos, diz-se olhos, através dos quais veria a vida, e a coisa dissimulada lá fora.

- Maldita semi-noite, costumava dizer baixinho Serdespanto, tropeçando nas coisas duras que ela, a sonsa, sempre espalha à frente dos caminhos dos homens para nos despertar, com quedas, do sonho de estar vivo.

Assim, a região dos murmúrios
naquele homem ela se instalando. Se instalara.

- Ó Serdespanto.
Lamentasse sua mãe, da terra agora, o lhe ter aberto a portinha que as mulheres têm entre as pernas para nos fazer tombar aqui,
caídos da casinha escura que elas, úmida, trazem dentro de si

Pois depois que ele chegara ela se fora
Aquele túmulo sendo uma outra casinha de terra onde a mãe agora habitasse em silêncio.

(CECIM, in: Cultura Pará).


Além de Ó Serdespanto, o Novidades & Velharias destaca mais três textos de Vicente Cecim para apreciação e conhecimento do universo criador do artista; quais sejam: A colheita das paisagens, Fonte das constelações e Não é a água (O) que se bebe.

Os textos e imagens, expostos a seguir, foram-me encaminhados diretamente pelo autor por meio de trocas de e-mails, onde Vicente Cecim esclarece que as imagens não são apenas ilustrativas. Outrossim, constituem-se “mais no sentido materno de Concepção Natural do que de conceituação mental - já constando elas do processo de criação ativado. Não são meras ilustrações. É o que eu inventei e passei a chamar de Iconescritura - compor com palavras+imagens+silêncios e vazios de palavras e imagens[6]”.

Bebamos um pouco mais do manancial onírico-fantasmagórico de Vicente Franz Cecim:



A colheita das paisagens


Para descer o céu à terra num antro mais cheio de murmúrios

aquilO

que morre nas flores
canta
um Rumor de luz

Eu escuto, na Residência da Semente Branca

daqueles que tiveram o pé esquerdo devorado por ovelhas

Eu nutro: os caminhos apagados
Eu nutro: a mais antiga, a Visão que veio ao encontro dos que vão
em busca

da espera de Si mesmos

Eu não sou a semente
de uma intensidade nua de espinhos,

eu não sou

Eu não sou

(CECIM, in: Conexão Maringá).


Fonte das constelações


.........................Sem semear ossos no fim da tarde
.........................e vindo ao encontro dos teus olhos no Caminhos das espreitas,

.........................eu busco
.........................o segredo luminoso

.........................da
.........................Tua
.........................Água

.........................Soprando as cinzas,
.........................mais humano que o Limo

.........................Este é o Passo de Sombras
.........................Esta é a Noite em que o céu virá beber nosso rumor de terra

.........................Aqui

.........................Eu espero

......................................................................................(CECIM, in: Conexão Maringá).


Não é a água (O) que se bebe


Para encontrar pedras mais leves,
dizer
à chuva: eis: ele, o Orvalho em chamas

mesmo se espessamente
caindo sobre nós

O
lodo
O
escorpião

não escondeu seu mal para nascer
O
Anjo sobre a Terra?

A fome
Não sonha com a abundância?

E o pão,

Não foi um dia o filho?

Vê sem agonia o que te diz o início deste dia:

Se com a sombra foram tuas Asas que ascenderam à Lua,
tua Poção de Chamas

insistir

na devoção pela Ausência,
soprar cinzas
para criar um bosque de sussurros

orado

junto ao fogo
pela Água da Luz apagado: eis: Tu, o Orvalho humanizado

À noite , não é a água O que se bebe

(CECIM. Poema áudio-visual, in: Errática).


Vicente Franz Cecim:
2008, Templo Zen Zu Lai.


Agradecimento

Agradeço ao escritor Vicente Franz Cecim pela generosidade e gentileza expressa em nossas trocas de e-mails, fornecendo-me belíssimos textos, imagens e valiosas informações, bem como autorização para publicação de suas obras no Novidades & Velharias.

Notas

[1] CARPINEJAR, Fabrício. Histórias ao pé das fogueiras. Ou um livro com a “nudez do pão”. In: JORNAL DE POESIA. Disponível em: <http://secrel.com.br/jpoesia/vcecim.html#carpinejar> Acesso em: 20 fev. 2009.

[2] CARPINEJAR, Fabrício. Vicente Franz Cecim: o alquimista luminoso do silêncio. AGULHA Revista de Cultura, n. 23, Fortaleza / São Paulo, 2002. In: JORNAL DE POESIA. Disponível em: <http://secrel.com.br/jpoesia/vcecim.html#entrevista>. Acesso em: 20 fev. 2009.

[3] CECIM, In: Entrevista a Fabrício Carpinejar.

[4] Idem.

[5] Idem, ibidem.

[6] CECIM, In: Eu nutro V icente Franz Cecim CANTOS// Vias para Cecim Viagem a Andara. [Correspondência de e-mail dirigida à Hercília Fernandes, em 18 fev. 2009].


SUGESTÕES DE LEITURA

Entrevistas, fortuna literária e crítica:

Biografia:

Textos e sinopses de obras: