domingo, 22 de fevereiro de 2009

Vicente Franz Cecim: o "Serdespanto" em Andara


O escritor paraense Vicente Franz Cecim, nas palavras do poeta e jornalista Fabrício Carpinejar, é um clássico “vivo e inacabado”, considerando que a sua criação literária “foge dos esquadros, escolas literárias e questões de vestibular, gerando seus antecessores no futuro[1]”.

Segundo Carpinejar, Vicente Franz Cecim é um dos escritores responsáveis pela instauração da “literatura fantasma”, aquela que permanece continuamente se reinventando, onde a obra adentra no universo fantasmagórico e se torna “invisível”, posto que o autor transcende o conhecimento para alcançar o desconhecido. Em suas palavras:

A literatura é fantasma; a obra, invisível. Não existe fim, nem início, serpente sonâmbula que morde sua cauda. O autor recusa a prepotência e conversa nos ouvidos do leitor, pedindo conselhos e partilhando a perplexidade dos mistérios[2].

Vicente Franz Cecim, também jornalista, natural de Belém do Pará (Amazônia), desde 1979 deu inicio à criação de 11 livros, a priori publicados individualmente; e, posteriormente, reunidos em dois volumes: Viagem a Andara: o livro invisível (1988) e Silencioso como o Paraíso (1995), obras reunidas pela editora Iluminuras (São Paulo-SP). Com a publicação de Viagem a Andara, que reúne, em volume único, seus sete primeiros livros, Vicente Cecim recebe o Grande Prêmio da Crítica da APCA.

Em 2001, o escritor lança, em Portugal, Ó Serdespanto, pela editora Íman. O livro recebe, imediatamente, entusiástica receptividade da crítica lusa, tendo sido eleito uma das melhores publicações de 2001, pelo jornal O Público, de Lisboa. No Brasil, Ó Serdespanto tivera a primeira edição publicada pela editora Bertrand Brasil (Rio de Janeiro-RJ), no ano de 2006.

Em entrevista concedida a Carpinejar, disponível na Revista Agulha e no Jornal de Poesia, Vicente Cecim se autodefine um “Serdespanto”, cuja estranheza torna-o capaz de escrever “o Nada que nos escreve escrevendo a vida, as paisagens, os homens, as chuvas, o vento, as vozes das coisas, seus cantos também, através de nós[3]”. Para Vicente Cecim não é o escritor quem escreve o livro, caso o fosse seria apenas uma cópia mal concebida da grande obra que consiste a própria expressão do

Vazio que transborda. É ele que nos escreve escrevendo a vida. Eu fui sabendo disso à medida então que ia escrevendo os livros visíveis de Andara, que são os livros que escrevo, os volumes individuais da Obra, e à medida que Viagem a Andara, o livro invisível que não escrevo, Ele é um não-livro, literatura fantasma, ia se formando: ia nutrindo esses livros para que eles existissem e deles ia se desnutrindo para existir em sua não existência[4].

A criação de Vicente Cecim, sendo concebida e materializada em “literatura fantasma”, navega os labirintos do sonho, do profano, do estranhamento e do invisível em fluxo inacabável. Andara configura, então, a região-metáfora da existência, onde o escritor transfigura a Amazônia através de “Andara [que] me escreve, por isso escrevo Andara, que é a Amazônia transfigurada através de Mim[5]”.

Vejamos, em textos, o que consiste Andara e O Serdespanto de Vicente Franz Cecim:

Ó Serdespanto


Em Andara,
é quando os homens esperam um anoitecer mais
calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras de sombras

e asas de areia
vêm nos açoitar.

Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto.
Passando, pois, aquele homem a se chamar assim
Serdespanto.

Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer

Em Andara, pois. Mais um tendo vindo.
de rastros, humano.

mas depois ele já não andava mais de rastros,
esse Serdespanto.
muito alto,

ou eram as nuvens que baixavam do céu para nele roçar,

o certo é que os seus olhos atravessavam névoas, nadas. Uma neblina vaga sempre flutuando em torno de sua caixinha de osso, diz-se cabeça. Posta essa neblinazinha entre os dois buracos, diz-se olhos, através dos quais veria a vida, e a coisa dissimulada lá fora.

- Maldita semi-noite, costumava dizer baixinho Serdespanto, tropeçando nas coisas duras que ela, a sonsa, sempre espalha à frente dos caminhos dos homens para nos despertar, com quedas, do sonho de estar vivo.

Assim, a região dos murmúrios
naquele homem ela se instalando. Se instalara.

- Ó Serdespanto.
Lamentasse sua mãe, da terra agora, o lhe ter aberto a portinha que as mulheres têm entre as pernas para nos fazer tombar aqui,
caídos da casinha escura que elas, úmida, trazem dentro de si

Pois depois que ele chegara ela se fora
Aquele túmulo sendo uma outra casinha de terra onde a mãe agora habitasse em silêncio.

(CECIM, in: Cultura Pará).


Além de Ó Serdespanto, o Novidades & Velharias destaca mais três textos de Vicente Cecim para apreciação e conhecimento do universo criador do artista; quais sejam: A colheita das paisagens, Fonte das constelações e Não é a água (O) que se bebe.

Os textos e imagens, expostos a seguir, foram-me encaminhados diretamente pelo autor por meio de trocas de e-mails, onde Vicente Cecim esclarece que as imagens não são apenas ilustrativas. Outrossim, constituem-se “mais no sentido materno de Concepção Natural do que de conceituação mental - já constando elas do processo de criação ativado. Não são meras ilustrações. É o que eu inventei e passei a chamar de Iconescritura - compor com palavras+imagens+silêncios e vazios de palavras e imagens[6]”.

Bebamos um pouco mais do manancial onírico-fantasmagórico de Vicente Franz Cecim:



A colheita das paisagens


Para descer o céu à terra num antro mais cheio de murmúrios

aquilO

que morre nas flores
canta
um Rumor de luz

Eu escuto, na Residência da Semente Branca

daqueles que tiveram o pé esquerdo devorado por ovelhas

Eu nutro: os caminhos apagados
Eu nutro: a mais antiga, a Visão que veio ao encontro dos que vão
em busca

da espera de Si mesmos

Eu não sou a semente
de uma intensidade nua de espinhos,

eu não sou

Eu não sou

(CECIM, in: Conexão Maringá).


Fonte das constelações


.........................Sem semear ossos no fim da tarde
.........................e vindo ao encontro dos teus olhos no Caminhos das espreitas,

.........................eu busco
.........................o segredo luminoso

.........................da
.........................Tua
.........................Água

.........................Soprando as cinzas,
.........................mais humano que o Limo

.........................Este é o Passo de Sombras
.........................Esta é a Noite em que o céu virá beber nosso rumor de terra

.........................Aqui

.........................Eu espero

......................................................................................(CECIM, in: Conexão Maringá).


Não é a água (O) que se bebe


Para encontrar pedras mais leves,
dizer
à chuva: eis: ele, o Orvalho em chamas

mesmo se espessamente
caindo sobre nós

O
lodo
O
escorpião

não escondeu seu mal para nascer
O
Anjo sobre a Terra?

A fome
Não sonha com a abundância?

E o pão,

Não foi um dia o filho?

Vê sem agonia o que te diz o início deste dia:

Se com a sombra foram tuas Asas que ascenderam à Lua,
tua Poção de Chamas

insistir

na devoção pela Ausência,
soprar cinzas
para criar um bosque de sussurros

orado

junto ao fogo
pela Água da Luz apagado: eis: Tu, o Orvalho humanizado

À noite , não é a água O que se bebe

(CECIM. Poema áudio-visual, in: Errática).


Vicente Franz Cecim:
2008, Templo Zen Zu Lai.


Agradecimento

Agradeço ao escritor Vicente Franz Cecim pela generosidade e gentileza expressa em nossas trocas de e-mails, fornecendo-me belíssimos textos, imagens e valiosas informações, bem como autorização para publicação de suas obras no Novidades & Velharias.

Notas

[1] CARPINEJAR, Fabrício. Histórias ao pé das fogueiras. Ou um livro com a “nudez do pão”. In: JORNAL DE POESIA. Disponível em: <http://secrel.com.br/jpoesia/vcecim.html#carpinejar> Acesso em: 20 fev. 2009.

[2] CARPINEJAR, Fabrício. Vicente Franz Cecim: o alquimista luminoso do silêncio. AGULHA Revista de Cultura, n. 23, Fortaleza / São Paulo, 2002. In: JORNAL DE POESIA. Disponível em: <http://secrel.com.br/jpoesia/vcecim.html#entrevista>. Acesso em: 20 fev. 2009.

[3] CECIM, In: Entrevista a Fabrício Carpinejar.

[4] Idem.

[5] Idem, ibidem.

[6] CECIM, In: Eu nutro V icente Franz Cecim CANTOS// Vias para Cecim Viagem a Andara. [Correspondência de e-mail dirigida à Hercília Fernandes, em 18 fev. 2009].


SUGESTÕES DE LEITURA

Entrevistas, fortuna literária e crítica:

Biografia:

Textos e sinopses de obras:


18 comentários:

  1. Que linguagem! Que maneira de observar o mundo, a criação, a natureza!
    Já li muito de Cecim, mas aqui acredito que foram expostas as pérolas.
    Parabéns, Hercília em homenagear um dos grandes nomes da atual literatura.

    Beijos

    Mirze

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  2. O Pará tem excelentes escritores, poetas.
    Serdespanto aqui é encontro e encanto. Brota ao buscar outra coisa quando parei de procurar. Em Andara canta o homem que imanta o mundo- um ser de palavras.

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  3. Hercília Parabéns! Não tenho muita paciência para navegar em Blogs. Resolvi me aventurar. São muitos e a maioria muito ruins. Mas encontrei aqui uma surpresa boa e belos textos e poemas. Estava navegando atrás de páginas relacionadas ao Lau Siqueira e cheguei até você. Mais e melhor: encontrei essa bela apresentação do Vicente Cecim, que é realmente um espanto de pessoa. Um caloroso abraço.

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  4. oi, hercilia

    gostei muito da análise que vc fez.

    tenho conhecido bons escritores deste modo, sendo que uma das análises mais perspicazes sobre o franz cecim, validado pelo próprio, li no blog do marcelo na postagem A Colheita das Paisagens, de Vicente Franz Cecim, legal saber mais, sob a sua ótica e bela análise.

    beijos

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  5. aliás, deixa eu complementar o que disse sobre a validação do cecim na análise feita pelo marcelo.

    o vicente enviou um texto inédito como presente e agradecimento ao marcelo, dizendo que se sentia menos solitário, por ter sido analisado por ele e bem ecoado na "Teia" (de Indra), termo usado pelo próprio cecim na postagem Isso, o Aquilo, o Sem Nome, O, de Vicente Franz Cecim

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  6. *Mirze,

    fico feliz que tenha apreciado a seleta de textos de Vicente Franz Cecim. Suas palavras muito me alegram.

    *Compulsão,

    muito agradecida por sua vinda e tão expressivo comentário. Sinta-se sempre bem vinda no Novidades & Velharias.

    *Augusto,

    muito obrigada por sua visita e gentis palavras. Fico feliz que o Google, através de sua pesquisa sobre o grande poeta Lau Siqueira, tenha nos aproximado. Muito bom recebê-lo aqui. Obrigada.

    *Adrianna,

    Sem sombra de dúvida o texto do Novaes é bastante elucidativo para compreensão da obra do Vicente Cecim; e, como deve ter percebido, encontra-se aqui citado entre as sugestões de leitura. Quanto a mim, o que propus, neste artigo, foi realizar um passeio descritivo da trajetória criadora do escritor com a apresentação de textos que o próprio Vicente me forneceu, e não realizar uma abordagem analítica da sua obra - o que exigiria uma leitura minuciosa do conjunto de sua criação, além de profunda reflexão e fundamentação teórica. Muito obrigada por sua visita e considerações. Sinta-se sempre muito bem vinda.

    Forte abraço, amigos.

    H.F.

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  7. Parabéns, minha querida, pelo trabalho/homenagem. Encantam-me a seriedade e a competência que você emprega "sempre" na construção dos seus textos.

    Um grande abraço,
    Lou

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  8. Lou, minha querida.

    Suas palavras deixam-me “sempre” muito, muito contente. Obrigada por sua sensibilidade e incentivos aos meus trabalhos.

    Forte abraço,

    H.F.

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  9. o cecim é fera,hercília.
    um beijo.
    romério

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  10. Concordo plenamente, Romério.

    A literatura do Vicente Cecim é “espantosamente” bela.

    Muito grata por sua visita, poetíssimo.

    Forte abraço,

    H.F.

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  11. Minha Querida Amiga,

    mais uma vez somos presenteados com um magnífico texto.

    Não conhecia o autor apresentado, cujo verbo me torna um "Serdespanto".

    Não há dúvida que na leitura destes poemas ressalta uma ligação ao acto de criação universal, a essa continua evolução onde todos somos, e que o autor faz, na minha opinião, questão de nos lembrar.

    "Tudo é semente."
    Relembro Novalis - quem muito admiro - para afirmar que também Vicente Franz Cecim é origem.

    Obrigado
    Vicente (Ferreira da Silva)

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  12. Vicente, querido amigo “português”.

    Tuas palavras sempre afetuosas e pontuadas por “sofia” fazem-me muito feliz. Muito me contenta saber que a leitura do "nosso" Vicente Cecim tenha contribuído para embalar o “ser-de-espanto” que há em ti.

    Receba o meu agradecimento e sincero abraço,

    H.F.

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  13. belo texto para bela apresentação do cecim: que é o espanto dentro do ser e o ser dentro do espanto.

    hercília é estimulante a espiral da vida e suas conexões
    você me trouxe à baila o momento mesmo que tomei contato com a obra: "silencioso como o paraíso"

    a imagem pulou da janela da memória

    foi muito engraçado
    era um sábado quase noite de julho de 1995 e o bom retiro (bairro de sampa) fervia apesar da rala chuva

    tamara ruiz chegou com este livro e disse a plenos pulmões de pássaro:
    puta-q-pariu!
    ôô meu
    tu tem que ler esse cara,
    ele não existe!

    ela já preanunciava este ser fantasma.

    abraços ternos
    e obrigado pelas possibilidades...

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  14. Fernando,

    Muito obrigada por sua vinda e contagem dessa bela passagem da sua vida. Creio que o Vicente Cecim ficará feliz com o seu afetuoso depoimento.

    Forte abraço,

    H.F.

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  15. gostei do que vi e li
    parabens pelo trabalho
    boa semana
    beijinhos
    Carla

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  16. Obrigada, Carla.

    Seja muito bem vinda ao Novidades & Velharias.

    Uma semana espantosamente iluminada.

    Beijos,

    H.F.

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  17. Oi, amiga!
    Cheguei hj de viagem.

    Muito bacana a postagem. Parabéns!!Também já havia lido sobre ele no blog do Novaes.

    Mas, quanto mais leitura sobre um escritor como Vicente Franz Cecim, melhor!

    Li e reli esta fala do escritor:

    “Andara [que] me escreve, por isso escrevo Andara, que é a Amazônia transfigurada através de Mim[5]”

    Achei demais!! Como se ele e a Amazônia fossem um só e, ela, falasse através dele...

    Beijos, querida.

    Excelente matéria.

    Taninha

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  18. Que bom, Taninha, que está de volta. Viva!

    Sim... essa passagem da entrevista do Vicente Cecim é um "susto" de tão fantástica. Vale à pena ler as entrevistas do escritor disponíveis no Jornal de Poesia.

    Obrigada pela leitura, gentis considerações e carinho expresso.

    Forte abraço,

    H.F.

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