quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Artigo: O ensino criativo & o caso da poesia

Educar com criatividade, garantir o direito de sonhar[1]


Por Hercília Fernandes


De acordo com Gaston Bachelard (1884-1962), uma das maiores faculdades humanas é a imaginação[2], sendo a criança um sujeito naturalmente sonhador. Para esse filósofo das ciências e da imaginação, o sonho desperto - que difere do sonho noturno -, quando bem dirigido, traz grandes benefícios à vida humana; posto que a imaginação é uma faculdade capaz "de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade[3]” que, posta em contato com a razão, a imaginação mostra a força inventiva, criadora e fornece inúmeras possibilidades ao pensamento lógico-sistemático. Para o filósofo, quando a razão é provocada pela imaginação, a razão constituída transforma-se “em razão experimental, suscetível de organizar surracionalmente o real[4]”, promovendo assim, por meio da relação imaginário-realidade, aprendizagens significativas e concretas.

Todavia, a escola tem, historicamente, desprezado a potencialidade da imaginação e criatividade da criança na relação ensino-aprendizagem formal: a sua capacidade de aprender pelo sonho, pela arte, pelo diferente...; Ou seja, a escola tem limitado a “arte de educar” pelo sensível, pelo prazer, pelo belo. Isso se deve, em parte, na crença exclusiva do poder da razão humana, gerada a partir do Iluminismo que, saída a fase de encantamento e ignorância do homem primitivo, torna o homem capaz de dominar a natureza física e a sua própria; Criando assim um novo mito: o mito do homem racional, provido de poderes cognitivos, porém carente de emoção, sentimento e subjetividade.

Nesse sentido, sendo a escola um espaço de socialização e formação humana onde perpassam paradigmas, valores e aspirações de uma determinada época e contexto social, tem sido protagonista da exclusão da criatividade, da subjetividade, diversidade e pluralidade, da aprendizagem pelo imaginário e pelo estético; e, por fim, da construção da autonomia dos sujeitos.

Entretanto, a partir do século XX, a expansão (e difusão) das pesquisas em educação tem comprovado a relevância das teorias científicas em torno do imaginário, da ludicidade, das múltiplas linguagens, da diversidade nos procedimentos de ensino - dentre outras temáticas - para o desenvolvimento e à aprendizagem de um ser em face de crescimento.

Nesse sentido, cumpre-se, neste ensaio, propor uma discussão em torno do que se compreende por “criativo no ensino”; partindo da premissa de que a criatividade do professor é uma qualidade da natureza do seu “eu” interligada as suas questões emocionais e ao outro/aluno (WOODS, 1995), porém, também uma competência que pode ser desenvolvida tecnicamente, já que ser “criativo” hoje na escola é, além de tudo, uma exigência da pós-modernidade, visto que o educando estar em constante contato com diversas fontes de saber e informações circundantes além dos muros da escola (LIBÂNEO, 2001)[5].

Assim, considera-se aqui que a atitude do educador em sair da exaustiva rotina curricular-pedagógica tradicional, bem como a utilização de diversas linguagens e procedimentos técnico-metodológicos na sala de aula são formas de garantir o direito da criança “sonhar”, já que ela é, por natureza, um sujeito sócio-humano criativo.

A criatividade no ensino

Segundo Peter Woods (1995), o ensino criativo se associa a subjetividade do educador – do seu próprio EU – e de como faz uso de sua autonomia na sala de aula. Tornando-se capaz de sair da rotina diária através de atitudes e expressões inovadoras, objetivando, com essas “novidades”, a construção de valores e princípios morais, saberes e o desenvolvimento de competências afetivas, psicolingüísticas, cognitivas, etc.; bem como, a superação de dificuldades e a obtenção de resultados positivos de aprendizagem.

Todavia, surgem propriamente as indagações: O que é ser criativo? Quais são as características básicas de um ensino criativo?

Para Woods, a criatividade do professor relaciona-se diretamente a sua autonomia, a dimensão subjetiva e afetiva, como também, as suas convicções e qualidades técnicas, e as ideologias e aspirações da sociedade e do sistema educativo vigente. No tocante ao “eu” do professor, o autor diz que, na prática pedagógica, o docente deve ser guiado pelo “eu” do “outro”; isto é, cabe ao educador considerar que além do seu eu, há também um “eu” no “aluno”. Assim, o docente tem que equilibrar a própria subjetividade em razão dos aspectos individuais e coletivos comuns aos educandos: o contexto sociocultural, a história de vida, os conhecimentos prévios, a política interna da escola, dentre outros fatores. Visto que a intervenção pedagógica inovadora deve ser potencializada na sala de aula para promover a imaginação e a criação e não para bloquear o processo de construção do conhecimento.

Imaginação e holismo: características do ensino criativo

Para Woods (1995), existem duas características que configuram o ensino criativo: imaginação e holismo. A competência imaginativa diz respeito à “capacidade de tomar o lugar do outro e de ensaiar potenciais interações antes do conhecimento[6]”. Assim, poder-se-ia entender que o despertar da imaginação do educador é pressuposto fundamental para que se possa potencializar formas expressivas, reflexivas, fontes e procedimentos técnicos satisfatórios na escola, de modo que a “inovação” do docente remeta à construção criativa e dinâmica de saberes e mudanças de atitudes nos educandos. Ou seja, a competência imaginativa do educador envolve também a sua capacidade de comunicação, de incentivação durante a apresentação de um tema ou proposta de um projeto de trabalho, preparando o espírito dos aprendizes à aprendizagem. A imaginação do professor também diz respeito a forma como ele articula fontes, informações, meios e recursos durante o processo de construção do conhecimento.

Outra característica do ensino criativo é o que Woods chama de “um certo holismo”, que envolve uma concepção de educação que compreende o educando e o ato de educar em sua totalidade, isto é, a competência “imaginativa” e “racional” do aprendiz. Em suas palavras:

“O ensino holístico se relaciona ao pensamento criativo combinado ao pensamento racional, que relacionados transforma o ato de ensinar uma arte[7]”.

Nesse contexto, a visão holística de educar compreende o sujeito-educando e o sujeito-educador como seres complexos, possuidores de especificidades e competências múltiplas, e, que, pode isso, devem receber uma educação que privilegie o olhar, a sensibilidade, a imaginação, o prazer, o movimento do corpo..., a fim de despertar a consciência e construir um sujeito em sua totalidade.

Por uma pedagogia do sonhar: o caso da poesia

Segundo Bachelard, apesar da imaginação ocorrer subjetivamente contém elementos materiais que se associam diretamente à experiência e ao conhecimento. Nesse sentido, sendo a poesia de domínio do imaginário - já que o poeta combina devaneio, saberes instituídos e técnicas literárias específicas -, faz-se necessário que se “ensine a sonhar” para que se possa potencializar a faculdade imaginativa do educando. O devaneio, no sentido da imaginação poética, pode servir para acordar a criatura humana para os mistérios da vida e potencializar competências, como bem destaca Bachelard:

“Com a poesia, a imaginação se coloca no lugar onde a função do irreal vem seduzir ou inquietar – sempre despertando – o ser adormecido em seus automatismos [8]”.

Desse modo, é necessária à ciência pedagógica a consciência de que é preciso sentir, sonhar, humanizar-se, como já acenava Cecília Meireles no início do século XX:

“Talvez a ciência pedagógica não diga tudo, se não for animada por um sopro sentimental, que a aproxime da vida quando apenas começa; desse lirismo que os homens, com o correr do tempo, ou perdem, ou escondem, cautelosos e envergonhados, como se o nosso destino não fosse o sermos humanos, mas práticos[9]”.

A educação estética pode abrir diversas possibilidades para uma consciência em crescimento e à ação educativa formal. Visto que, através da imaginação poética, o sujeito passa a ver a vida noutra dimensão, adquire uma nova visão de mundo, de si mesmo e vislumbra possibilidades concretas. Entretanto, “o sonhador não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo[10]”. Assim, é tarefa da pedagogia pensar a profundidade desse espelho, como apontam Caruso e Freitas (2003):

“É fundamental que seja o educador a dar profundidade a esse espelho, através de sua própria imagem, reflexo de um conjunto de valores e saberes adquiridos. É ele que motivará seus alunos a sonharem, sob pena de levá-los à frieza da incredulidade. Sua postura diante da vida – da própria vida e da vida dos outros – é determinante[11]”.

Nesse contexto, é tarefa da pedagogia, enquanto ciência da reflexão e da prática educativa, pensar uma educação que corresponda à totalidade do sujeito sócio-humano de maneira que as suas capacidades imaginativas e lúdicas, afetivas, sensitivas, abstratas e lógicas, sinestésicas, lingüísticas, espaciais, etc., sejam atendidas no ensino formal, possibilitando a construção de significados para a vida subjetiva e social do educando. Um ensino global que prioriza o imaginário e a criação, mas também o domínio de competências racionais e técnicas que levem o indivíduo ao trabalho e, dele, se regozijar com a produtividade.

Assim, pôr em evidência uma pedagogia do sonhar pressupõe a adoção de uma concepção de educação e práxis docentes equilibradas, desprovidas de posições extremistas que remetem a ações intencionais pautadas apenas em um “isto” ou em um “aquilo”.

Para refletir:

Abra sua imaginação, leia o poema “Passarinho” (FERNANDES, 2005)[12], ouça a melodia da canção, depois reflita como você utilizaria estes versos em uma prática pedagógica:


Canta, canta, passarinho.
Canta, encanta, esse lugar.
Canta, canta, bem fininho.
Canta, encanta, o céu e o mar.


Voa, voa, passarinho
Voa, voa, até cansar
Voa, voa, constrói seu ninho
Voa, voa, até pousar.


Canta, encanta esse lugar
Voa, voa até cansar.
Canta, encanta, o céu e o mar

Voa, voa, até pousar.


Hercília Fernandes

Mestranda em Educação (PPGED-UFRN). Especialista em Educação Infantil e Pedagoga (CERES-UFRN). Escritora e poetisa com dois livros publicados com apoio cultural do SESC-RN.

E-mail: fernandeshercilia@yahoo.com.br


Notas:


[1] Artigo apresentado em disciplina ministrada pela autora - "Didática" - no Curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (Caicó-RN), em Maio de 2007.

[2] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978.

[3] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978.

[4] RODRIGUES, Victor Hugo Guimarães. Gaston Bachelard e a sedução poética: a criação de um filosofar onírico. In: Revista Eletrônica Mestrado em Educação Ambiental. v. 15, julho a dezembro de 2005, p. 55. Disponível em: <http://www.remea.furg.br/edicoes/vol15/art05.pdf.> Acesso em: 05/02/2007. 2005.

[5] LIBÂNEO, José Carlos. Adeus professor, adeus professora: novas exigências educacionais e profissão docente. São Paulo: Cortez, 2001.

[6] WOODS, Peter. Aspectos sociais da criatividade do professor. In: NÓVOA, Antônio (Org.). Profissão professor. Coleção Ciências da Educação. 2 ed. Portugal: Porto Editora, 1995, p. 132.

[7] Idem, ibid.

[8] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978, p. 195.

[9] MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3 ed. São Paulo: Summus, 1984, p. 30.

[10] CARUSO, Francisco; FREITAS, Maria Cristina Silveira. Educar é fazer sonhar. Centro de Brasileiro de Pesquisas Físicas / CBPF-CS-009/03, p. 4. Disponível em: <http://cbpfindex.cbpf.br/publication_pdfs/cs00903.2006_12_08_10_36_41.pdf.%3e%20Acesso em: 04/02/2007.

[11] Idem, ibid.

[12] FERNANDES, Hercília. Retrato de Helena. Natal-RN: Natal Gráfica, 2005.



2 comentários:

  1. Parabéns, Hercília.
    Tá aí um artigo que eu assinaria com você, embora não seja pedagogo.
    Vou repassar para meus colegas do departamento de educação daqui da universidade onde trabalho.
    Onde posso ler teus poemas ?
    Visite o meu blog quando tiver um tempinho (http://coisasdochico.blogspot.com).
    Beijão,
    Francisco

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  2. Olá Assis,

    fico feliz que tenha apreciado o artigo: sinta-se co-autor do texto!

    Visitarei o seu blog com entusiasmo: pode crer!

    Agradeço a visita e as gentis palavras.

    Abraços, HF.

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