Educar com criatividade, garantir o direito de sonhar[1]
Por Hercília Fernandes
De acordo com Gaston Bachelard (1884-1962), uma das maiores faculdades humanas é a imaginação[2], sendo a criança um sujeito naturalmente sonhador. Para esse filósofo das ciências e da imaginação, o sonho desperto - que difere do sonho noturno -, quando bem dirigido, traz grandes benefícios à vida humana; posto que a imaginação é uma faculdade capaz "de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade[3]” que, posta em contato com a razão, a imaginação mostra a força inventiva, criadora e fornece inúmeras possibilidades ao pensamento lógico-sistemático. Para o filósofo, quando a razão é provocada pela imaginação, a razão constituída transforma-se “em razão experimental, suscetível de organizar surracionalmente o real[4]”, promovendo assim, por meio da relação imaginário-realidade, aprendizagens significativas e concretas.
Todavia, a escola tem, historicamente, desprezado a potencialidade da imaginação e criatividade da criança na relação ensino-aprendizagem formal: a sua capacidade de aprender pelo sonho, pela arte, pelo diferente...; Ou seja, a escola tem limitado a “arte de educar” pelo sensível, pelo prazer, pelo belo. Isso se deve, em parte, na crença exclusiva do poder da razão humana, gerada a partir do Iluminismo que, saída a fase de encantamento e ignorância do homem primitivo, torna o homem capaz de dominar a natureza física e a sua própria; Criando assim um novo mito: o mito do homem racional, provido de poderes cognitivos, porém carente de emoção, sentimento e subjetividade.
Nesse sentido, sendo a escola um espaço de socialização e formação humana onde perpassam paradigmas, valores e aspirações de uma determinada época e contexto social, tem sido protagonista da exclusão da criatividade, da subjetividade, diversidade e pluralidade, da aprendizagem pelo imaginário e pelo estético; e, por fim, da construção da autonomia dos sujeitos.
Entretanto, a partir do século XX, a expansão (e difusão) das pesquisas em educação tem comprovado a relevância das teorias científicas em torno do imaginário, da ludicidade, das múltiplas linguagens, da diversidade nos procedimentos de ensino - dentre outras temáticas - para o desenvolvimento e à aprendizagem de um ser em face de crescimento.
Nesse sentido, cumpre-se, neste ensaio, propor uma discussão em torno do que se compreende por “criativo no ensino”; partindo da premissa de que a criatividade do professor é uma qualidade da natureza do seu “eu” interligada as suas questões emocionais e ao outro/aluno (WOODS, 1995), porém, também uma competência que pode ser desenvolvida tecnicamente, já que ser “criativo” hoje na escola é, além de tudo, uma exigência da pós-modernidade, visto que o educando estar em constante contato com diversas fontes de saber e informações circundantes além dos muros da escola (LIBÂNEO, 2001)[5].
Assim, considera-se aqui que a atitude do educador em sair da exaustiva rotina curricular-pedagógica tradicional, bem como a utilização de diversas linguagens e procedimentos técnico-metodológicos na sala de aula são formas de garantir o direito da criança “sonhar”, já que ela é, por natureza, um sujeito sócio-humano criativo.
A criatividade no ensino
Segundo Peter Woods (1995), o ensino criativo se associa a subjetividade do educador – do seu próprio EU – e de como faz uso de sua autonomia na sala de aula. Tornando-se capaz de sair da rotina diária através de atitudes e expressões inovadoras, objetivando, com essas “novidades”, a construção de valores e princípios morais, saberes e o desenvolvimento de competências afetivas, psicolingüísticas, cognitivas, etc.; bem como, a superação de dificuldades e a obtenção de resultados positivos de aprendizagem.
Todavia, surgem propriamente as indagações: O que é ser criativo? Quais são as características básicas de um ensino criativo?
Para Woods, a criatividade do professor relaciona-se diretamente a sua autonomia, a dimensão subjetiva e afetiva, como também, as suas convicções e qualidades técnicas, e as ideologias e aspirações da sociedade e do sistema educativo vigente. No tocante ao “eu” do professor, o autor diz que, na prática pedagógica, o docente deve ser guiado pelo “eu” do “outro”; isto é, cabe ao educador considerar que além do seu eu, há também um “eu” no “aluno”. Assim, o docente tem que equilibrar a própria subjetividade em razão dos aspectos individuais e coletivos comuns aos educandos: o contexto sociocultural, a história de vida, os conhecimentos prévios, a política interna da escola, dentre outros fatores. Visto que a intervenção pedagógica inovadora deve ser potencializada na sala de aula para promover a imaginação e a criação e não para bloquear o processo de construção do conhecimento.
Imaginação e holismo: características do ensino criativo
Para Woods (1995), existem duas características que configuram o ensino criativo: imaginação e holismo. A competência imaginativa diz respeito à “capacidade de tomar o lugar do outro e de ensaiar potenciais interações antes do conhecimento[6]”. Assim, poder-se-ia entender que o despertar da imaginação do educador é pressuposto fundamental para que se possa potencializar formas expressivas, reflexivas, fontes e procedimentos técnicos satisfatórios na escola, de modo que a “inovação” do docente remeta à construção criativa e dinâmica de saberes e mudanças de atitudes nos educandos. Ou seja, a competência imaginativa do educador envolve também a sua capacidade de comunicação, de incentivação durante a apresentação de um tema ou proposta de um projeto de trabalho, preparando o espírito dos aprendizes à aprendizagem. A imaginação do professor também diz respeito a forma como ele articula fontes, informações, meios e recursos durante o processo de construção do conhecimento.
Outra característica do ensino criativo é o que Woods chama de “um certo holismo”, que envolve uma concepção de educação que compreende o educando e o ato de educar em sua totalidade, isto é, a competência “imaginativa” e “racional” do aprendiz. Em suas palavras:
“O ensino holístico se relaciona ao pensamento criativo combinado ao pensamento racional, que relacionados transforma o ato de ensinar uma arte[7]”.
Nesse contexto, a visão holística de educar compreende o sujeito-educando e o sujeito-educador como seres complexos, possuidores de especificidades e competências múltiplas, e, que, pode isso, devem receber uma educação que privilegie o olhar, a sensibilidade, a imaginação, o prazer, o movimento do corpo..., a fim de despertar a consciência e construir um sujeito em sua totalidade.
Por uma pedagogia do sonhar: o caso da poesia
Segundo Bachelard, apesar da imaginação ocorrer subjetivamente contém elementos materiais que se associam diretamente à experiência e ao conhecimento. Nesse sentido, sendo a poesia de domínio do imaginário - já que o poeta combina devaneio, saberes instituídos e técnicas literárias específicas -, faz-se necessário que se “ensine a sonhar” para que se possa potencializar a faculdade imaginativa do educando. O devaneio, no sentido da imaginação poética, pode servir para acordar a criatura humana para os mistérios da vida e potencializar competências, como bem destaca Bachelard:
“Com a poesia, a imaginação se coloca no lugar onde a função do irreal vem seduzir ou inquietar – sempre despertando – o ser adormecido em seus automatismos [8]”.
Desse modo, é necessária à ciência pedagógica a consciência de que é preciso sentir, sonhar, humanizar-se, como já acenava Cecília Meireles no início do século XX:
“Talvez a ciência pedagógica não diga tudo, se não for animada por um sopro sentimental, que a aproxime da vida quando apenas começa; desse lirismo que os homens, com o correr do tempo, ou perdem, ou escondem, cautelosos e envergonhados, como se o nosso destino não fosse o sermos humanos, mas práticos[9]”.
A educação estética pode abrir diversas possibilidades para uma consciência em crescimento e à ação educativa formal. Visto que, através da imaginação poética, o sujeito passa a ver a vida noutra dimensão, adquire uma nova visão de mundo, de si mesmo e vislumbra possibilidades concretas. Entretanto, “o sonhador não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo[10]”. Assim, é tarefa da pedagogia pensar a profundidade desse espelho, como apontam Caruso e Freitas (2003):
“É fundamental que seja o educador a dar profundidade a esse espelho, através de sua própria imagem, reflexo de um conjunto de valores e saberes adquiridos. É ele que motivará seus alunos a sonharem, sob pena de levá-los à frieza da incredulidade. Sua postura diante da vida – da própria vida e da vida dos outros – é determinante[11]”.
Nesse contexto, é tarefa da pedagogia, enquanto ciência da reflexão e da prática educativa, pensar uma educação que corresponda à totalidade do sujeito sócio-humano de maneira que as suas capacidades imaginativas e lúdicas, afetivas, sensitivas, abstratas e lógicas, sinestésicas, lingüísticas, espaciais, etc., sejam atendidas no ensino formal, possibilitando a construção de significados para a vida subjetiva e social do educando. Um ensino global que prioriza o imaginário e a criação, mas também o domínio de competências racionais e técnicas que levem o indivíduo ao trabalho e, dele, se regozijar com a produtividade.
Assim, pôr em evidência uma pedagogia do sonhar pressupõe a adoção de uma concepção de educação e práxis docentes equilibradas, desprovidas de posições extremistas que remetem a ações intencionais pautadas apenas em um “isto” ou em um “aquilo”.
Para refletir:
Abra sua imaginação, leia o poema “Passarinho” (FERNANDES, 2005)[12], ouça a melodia da canção, depois reflita como você utilizaria estes versos em uma prática pedagógica:
Canta, canta, passarinho.
Canta, encanta, esse lugar.
Canta, canta, bem fininho.
Canta, encanta, o céu e o mar.
Voa, voa, passarinho
Voa, voa, até cansar
Voa, voa, constrói seu ninho
Voa, voa, até pousar.
Canta, encanta esse lugar
Voa, voa até cansar.
Canta, encanta, o céu e o mar
Voa, voa, até pousar.
Hercília Fernandes
Mestranda em Educação (PPGED-UFRN). Especialista em Educação Infantil e Pedagoga (CERES-UFRN). Escritora e poetisa com dois livros publicados com apoio cultural do SESC-RN.
E-mail: fernandeshercilia@yahoo.com.br
Notas:
[1] Artigo apresentado em disciplina ministrada pela autora - "Didática" - no Curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (Caicó-RN), em Maio de 2007.
[2] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978.
[3] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978.
[4] RODRIGUES, Victor Hugo Guimarães. Gaston Bachelard e a sedução poética: a criação de um filosofar onírico. In: Revista Eletrônica Mestrado
[5] LIBÂNEO, José Carlos. Adeus professor, adeus professora: novas exigências educacionais e profissão docente. São Paulo: Cortez, 2001.
[6] WOODS, Peter. Aspectos sociais da criatividade do professor. In: NÓVOA, Antônio (Org.). Profissão professor. Coleção Ciências da Educação. 2 ed. Portugal: Porto Editora, 1995, p. 132.
[7] Idem, ibid.
[8] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978, p. 195.
[9] MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3 ed. São Paulo: Summus, 1984, p. 30.
[10] CARUSO, Francisco; FREITAS, Maria Cristina Silveira. Educar é fazer sonhar. Centro de Brasileiro de Pesquisas Físicas / CBPF-CS-009/03, p. 4. Disponível em: <http://cbpfindex.cbpf.br/publication_pdfs/cs00903.2006_12_08_10_36_41.pdf.%3e%20Acesso em: 04/02/2007.
[11] Idem, ibid.
[12] FERNANDES, Hercília. Retrato de Helena. Natal-RN: Natal Gráfica, 2005.
Parabéns, Hercília.
ResponderExcluirTá aí um artigo que eu assinaria com você, embora não seja pedagogo.
Vou repassar para meus colegas do departamento de educação daqui da universidade onde trabalho.
Onde posso ler teus poemas ?
Visite o meu blog quando tiver um tempinho (http://coisasdochico.blogspot.com).
Beijão,
Francisco
Olá Assis,
ResponderExcluirfico feliz que tenha apreciado o artigo: sinta-se co-autor do texto!
Visitarei o seu blog com entusiasmo: pode crer!
Agradeço a visita e as gentis palavras.
Abraços, HF.