terça-feira, 17 de junho de 2008

A LITERATURA INFANTIL ATRAVÉS DOS TEMPOS (Parte I)



A Literatura Infantil, como produto histórico humano, resulta das relações subjetivas e objetivas que o homem estabelece com o seu meio social, cultural, intelectual, lingüístico, político e econômico. Com as concepções que o artista compartilha acerca do mundo / homem / sociedade, com os ideais e valores que se consideram úteis e desejáveis para transmitir às crianças e aos jovens. Por isso, a produção literária infantil é resultante, também, dos aspectos filosóficos – políticos - educacionais e da qualidade da educação ofertada numa dada época e contexto sócio-histórico.
Nesse sentido, o estudo A literatura infantil através dos tempos, dividido aqui em seis partes, realiza um percurso histórico à Literatura Infantil - da gênese aos dias atuais - numa abordagem histórico-cultural; pontuando fatos, valores, paradigmas, intencionalidades pedagógicas, funcionalidades sociais, autores e obras.
Para tal feito, o trabalho contempla as frentes de leitura: origem e evolução histórica da Literatura Infantil a partir dos estudos oferecidos pela crítica e historiadora Nelly Novaes Coelho (1983, 1991, 2003) e demais estudiosos como Magnani (1989) e Regina Zilberman (2003); fundamentos filosófico-educacionais na literatura infantil tendo como base as pesquisas feitas por Ariès (1978), Alessandra Arce (2002) e Carlota Boto (2002); e valores ideológicos na literatura infantil a partir da parceria com a pedagogia, considerando as mudanças de paradigmas provocadas pelas conquistas da ciência, dentre eles o discurso médico-higienista sob a educação e, conseqüentemente, sob a produção literária infantil (COELHO 1991; GONDRA 2002, 2004). A partir da adoção dessas categorias analíticas busca-se focalizar a Literatura Infantil como expressão artística e sócio-histórica, portanto um fenômeno contínuo humano, ou melhor, atividade inacabável:
– “Era uma vez”...


1 QUANDO TUDO COMEÇOU... GÊNESE DA LITERATURA INFANTIL[1]

1.1 A Literatura Primordial

A história da Literatura Infantil integra o percurso histórico da Literatura Geral, já que as primeiras narrativas eram contadas, indiscriminavelmente, para “adultos” e “crianças”. A chamada literatura clássica - as novelísticas medievais, antecedentes da Literatura Infantil -, é de origem indo-européia, de fontes orais vindas da Índia que se estenderam pela Europa.
Consiste em uma “Literatura Primordial” oriunda do Oriente, da chamada Literatura Popular, ligada a eventos espirituais, míticos e fantasiosos que perduram na memória do povo; talvez porque: “O impulso de contar estórias deve ter nascido no homem no momento em que ele sentiu a necessidade de comunicar aos outros certa experiência sua, que poderia ter significação para outros (COELHO, 1991, p. 13)[2].
Dessa literatura primordial surgem as narrativas medievais arcaicas que se estendem pela Europa e América, se transformando em Literatura Folclórica e Infantil. A Literatura de Cordel, pertinente ao folclore nordestino brasileiro, consiste em versões dessas narrativas. Já a literatura Infantil tem origem nos registros feitos por escritores cultos, dentre eles Perrault e os Irmãos Grimm.
Os principais valores ideológicos dessas primeiras narrativas eram: hierarquia social mediante “a lei do mais forte”; reprodução, conservação do passado, e, transmissão de ensinamentos edificantes (Hitopadesa - modelos de moral voltados ao respeito ao próximo e a constituição da aristocracia primitiva).
Algumas narrativas: Calila e Dima (Índia, Séc. V a.C); Sendebar (Índia, s/d); Barlaam e Josafart (novelística mística/versão grega, Séc. VIII); As mil e uma noites (Contos orientais/versão européia datada do Séc. XV ou XVI).


1.2 A Era das “sombras”... A Literatura Medieval

A literatura medieval fora marcada por contradições, já que, no período que compreende a Idade Média (Séc. V ao XV), se evidenciam traços antagônicos de violência, lutas pela hegemonia do poder, conquistas e dominações entre povos, cristianismo, luxúria e moral ascética. No entanto, fora responsável, mesmo que lentamente, por preparar terreno à Idade Moderna, assim diz Coelho (1991, pp. 32-33):

Nesses dez séculos medievais realiza-se o longo e complexo processo histórico-cultural que prepara a Idade Moderna, durante o qual [...] se foram fundindo (aquecidos pelo fogo espiritual cristão): a vitalidade rude, a violência instintiva e o sangue novo-primitivo dos bárbaros com os valores civilizadores da Antigüidade Clássica grego-romana [...] que haviam permanecido nos conventos, sob a guarda dos primitivos monges padres da Igreja.

A Literatura medieval surge na Europa por meio de duas fontes: a Popular – prosa “exemplar” vinda do Oriente -; e, a Culta – prosas aventurescas das novelas de cavalaria. Na Literatura Popular destaca-se o idealismo e a visão de um mundo de magias e maravilhas. Na Culta, os problemas da vida cotidiana, os valores ético-sociais e as lições advindas da sabedoria prática.
Características das narrativas: Os contos de fadas destacam-se pelo “simbolismo” e retratam as violências às crianças e às mulheres, os assassinatos e as práticas de canibalismo; a fome e a miséria que levam os pais a abandonarem os filhos na floresta, e os homens a matarem as esposas para se casar com as filhas (WALKENAER, apud COELHO, 1991, pp. 33-34).
Algumas narrativas desse período: Os Isopets – O Romance da Raposa (fábulas baseadas nas traduções de Fedro acerca de Esopo e se expande na Europa no Séc. X); Disciplinas Clericalis (Pedro Alfonso) contêm conselhos morais de um pai ao filho, reforçando provérbios e sentenças; O livro de exemplos (Clemente Sanchez, séc. XIV), coleção de mais de trezentos contos de caráter moralizante, sentencioso e doutrinário, usado por pregadores cristãos; O livro de Esopo (circulou na Europa, em manuscrito, por volta do Séc. XV). A versão portuguesa apresenta um Esopo cristianizado e moralizante.
As Novelas de Cavalaria, criadas da forma Culta, em versos no Ocidente, dão origens aos contos populares, sobretudo no Nordeste brasileiro, e tratam dos grandes feitos heróicos. O Decameron (Boccaccio), prosa ficcional, realista e bem humorada, limita o fim da Idade Média e início do Renascimento. Em O Decameron encontram-se os valores contraditórios de uma época: amor cortês; luxúria; asceticismo religioso; valorização ao cristianismo; desonestidades e falsidades; astúcias e luxúria da mulher.



Notas:

[1] Trabalho apresentado pela professora Doutoranda, Mestra em Educação e Especialista em Educação Infantil, Hercília Maria Fernandes à Banca de Professores Examinadores no Concurso para Professor Substituto (2008.1), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 29 de Janeiro de 2008, durante o processo seletivo para concorrer a cadeira de professor da disciplina Literatura Infantil no curso de Pedagogia/UFRN/CERES/Campus de Caicó-RN.
[2] Todas as referências bibliográficas, citadas no curso das seis partes que integram este estudo, encontram-se presentes no término de: "A Literatura Infantil na Atualidade (Parte VI)". Disponível em: http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/2008/06/literatura-infantil-atravs-dos-tempos.html



A LITERATURA INFANTIL ATRAVÉS DOS TEMPOS (Parte II)



2 DAS NARRATIVAS ORAIS À ESCRITA[1]


2.1 Mas, os tempos mudam...


É durante a modernidade que a literatura Ocidental adquire seu contorno e alcança o apogeu da civilização humanista – liberal – cristã – burguesa.

No Renascimento acontece um amplo e complexo movimento cultural que se propaga pela Europa Ocidental, por volta dos séculos XV e XVI, e impõe novas concepções de homem/mundo e relações sociais. Vários fatores contribuem para efetivar transformações na mentalidade e vida cultural, dentre eles: as descobertas científicas (Copérnico, Kepler, Galileu), as conquistas marítimas e as novas terras conquistadas; as reformas religiosas (Lutero - Protestante e a Contra-Reforma – Católica); a vulgarização do papel (Séc. XIV) e a invenção da imprensa (Séc. XV).

A invenção da imprensa marca profundas mudanças no quadro cultural, já que surge também o livro em série e, com ele, o fim dos “copistas” e a propagação das “novas” idéias.

A visão de mundo deixa de ser Teocêntrica e cria-se um otimismo ingênuo em torno do Homem - antropocentrismo -, que a tudo pode criar, transformar, dominar... Funde-se um humanismo inspirado na Antigüidade grego-romana e adaptado ao cristianismo; mudam-se os costumes e práticas; criam-se escolas, produzem-se livros em série a fim de civilizar, higienizar, formar uma nova consciência com hábitos saudáveis, desejáveis e citadinos mediante o modelo educacional da nobreza culta (BOTO, 2002)[2].



2.2 A criança-leitora e a modelação do espírito infantil


A partir do Renascimento tem-se início um longo processo de produção e massificação dos valores da nova classe dominante – a burguesia -, onde a criança é preparada para tornar-se o Novo Homem.

A criança, nessa época, é concebida como “adulto em miniatura” e, gradativamente, é afastada do convívio familiar - considerado pobre, rude e inapropriado - e introduzida nos colégios. Efetua-se um fortuito projeto de transformação cultural, cuja criança passa a ser encarada como leitora em potencial, e, a infância, fase de semear e de minimizar esse estágio de “incompletude” da vida (BOTO, 2002).

Pedagogos, preocupados com os “novos” espíritos, passam a escrever livros, cartilhas e similares para fins educacionais, sobretudo morais e de “boas” maneiras, conforme os hábitos corteses. Dentre os escritores pioneiros, destacam-se: Erasmo (1467-1536) com a obra Educação Liberal das Crianças; Rabelais (1483-1553) com a sátira Gargantua critica a escolástica e defende a educação moderna; e, Montaigne (1533-1592), em seus Ensaios, defende o novo ideal e espírito humanista de preparar o “cavalheiro” ao invés do homem erudito (COELHO, 1991; BOTO, 2002).

Narrativas das antigas tradições orais são reescritas e readaptadas mediante intencionalidades pedagógicas, ideologias, valores e novos saberes da burguesia e da ciência pedagógica moderna (COELHO, 1991; MEIRELES, 1984). O livro escolar passa a desempenhar, em casa, a função do mestre, e, além de instruir a criança dentro dos moldes burgueses, desempenha uma função modeladora junto às mães e aos pais que necessitam ser reeducados dentro do espírito capitalista (ZILBERMAN, 2003).



Notas:

[1] Trabalho apresentado pela professora Mestranda em Educação e Especialista em Educação Infantil Hercília Maria Fernandes à Banca de Professores Examinadores no Concurso para Professor Substituto (2008.1), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 29 de Janeiro de 2008, durante o processo seletivo para concorrer a cadeira da disciplina Literatura Infantil no curso de Pedagogia/UFRN/CERES/Campus de Caicó-RN.

[2] Todas as referências bibliográficas, citadas no curso das seis partes que integram este estudo, encontram-se presentes no término de: "A Literatura Infantil na Atualidade (Parte VI)". Disponível em: http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/2008/06/literatura-infantil-atravs-dos-tempos.html



segunda-feira, 16 de junho de 2008

A LITERATURA INFANTIL ATRAVÉS DOS TEMPOS (Parte III)



3 NASCE A CRIANÇA, SURGE O GÊNERO INFANTIL, RENOVA-SE A ESCOLA[1]


3.1 A descoberta do sentimento de infância


Apesar das mudanças crescentes no Renascimento, é somente nos fins do Séc. XVII e início do Séc. XVIII que se efetiva uma produção literária destinada ao leitor-criança.

De acordo com os estudos de Ariès (1978)[2], até meados dos séculos XVI e XVII, não havia uma distinção entre adultos e crianças - que compartilhavam das mesmas aventuras literárias -, já que não existia, ainda, o sentimento de infância.

A descoberta do sentimento de infância no Ocidente, durante a Idade Moderna, provocada pela formação de uma nova organização familiar em torno de núcleo unicelular que se preocupa em manter a privacidade e a permanência do patrimônio em torno da genealogia mais próxima, promove a expansão dos laços afetivos entre adultos e crianças.

Com a introdução do modelo burguês de família nuclear, a infância passa a ser valorizada e a criança vista com um “bem precioso” que necessita ser protegido das doenças, da mortalidade infantil e das mazelas sociais; e separado do convívio comunitário, sobretudo da perversidade moral adulta.

Aumenta o processo de escolarização, e a criança passa a ser merecedora de receber uma formação intelectual sistematizada, por meio de uma organização institucional renovada. Paralelamente em que se instauram e se consolidam as primeiras instituições que pretendem formar a criança, a Literatura Infantil aparece com finalidade utilitária, dogmática e moralizante a fim de preparar o novo convívio social, e inculcar, no espírito infantil, os valores necessários para o bom desenvolvimento ético e intelectual do futuro cidadão. Conforme Zilberman (2003, p. 15):


A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e manipulação de suas emoções. Literatura e escola, inventada a primeira e reformada a segunda, são convocadas para cumprir essa missão.


3.2 A parceria Literatura-Pedagogia


O gênero Literatura Infantil surge de mãos dadas com a pedagogia, já que foram os pedagogos (séculos XVII e XVIII) os primeiros escritores a se dedicarem a uma literatura específica ao público criança. Compõe essa Literatura precursora para crianças a obra Orbis Pictus de Comenius - livro de imagens e/ou cartilha visual -, que almeja facilitar o processo de alfabetização.

Comenius (1592-1670) publica, além de escrever às crianças, A Didática Magna objetivando, conforme ideário universalista e humanismo cristão, orientar os mestres para que se fizesse possível “ensinar Tudo a Todos”, partindo do mais “simples (coisas) ao “complexo” (palavras).

Com a ascensão da burguesia, a deflagração da Revolução Industrial e a parceria “Literatura – Pedagogia” nasce uma Literatura “comprometida com a dominação da criança” (ZILBERMAN, 2003, p. 16). Muito embora, a educação humanista liberal tentasse instaurar uma pedagogia renovada, desprovida da rigidez enciclopédica, violências psicoafetivas e metodológicas dos colégios cristãos (escolástica).



3.3 Rousseau, a nova concepção e a condenação às fábulas


É durante o Séc. XVII que se expande, pela França, uma Literatura específica às crianças: As Fábulas (1668) de La Fontaine; Os Contos da Mamãe Gansa (1691-1697) de Perrault; Os contos de Fadas de M.me D’Aulnoy e Telêmaco (1699) de Fénelon constituem os livros pioneiros dentro do gênero infanto-juvenil.

Os escritores - valorizando a fantasia, a imaginação da criança e retomando as fontes orais da Tradição -, contrariam a Literatura erudita da época e voltam-se à infância. Na opinião de Meireles (1984, p. 99):


Esses livros não tinham apenas o objetivo de entreter a criança ou de transmitir-lhe noções morais. Muitos visavam [...] transmitir os conhecimentos necessários às várias idades da vida. [...] É quando melhor se podem observar os três aspectos da Literatura Infantil: o moral, o instrutivo e o recreativo.


Todavia, no Séc. XVIII, aparecerá um filósofo que não compartilha dessa opinião: Jean Jacques Rousseau (1712-1778).

O século XVIII, conhecido como o “Século das Luzes” ou “Iluminismo”, fora palco da efervescência das novas idéias educacionais com o pensamento revolucionário de Rousseau, expresso na grande obra O Emílio ou da Educação.

Rousseau - com base espiritualista e convicções sociais (bondade do homem / corrupção da sociedade), defende uma educação natural, conforme etapas distintas da vida da criança e sob a tutela de um único preceptor -, fará oposição às Fábulas de La Fontaine; pois, para o filósofo, são leituras que falseiam a realidade e, portanto, degradam a mente da criança; já que ela não tem maturidade psicológica para compreender as metáforas que vestem os ensinamentos morais, então, corrompidos:


Ensinamos as fábulas de La Fontaine a todas as crianças, e não há uma só que as compreenda. E se as entendessem, seria pior ainda, porque a moral ali está tão misturada e desproporcionada à sua idade que levaria mais facilmente ao vício do que à virtude (ROUSSEAU, apud COELHO, 1991, P. 126).


De acordo com muitos historiadores, as idéias de Rousseau repercutiram no Séc. XIX, na chamada Era Romântica, e oferecem tessitura ao naturalismo estético e ao fenômeno civilizatório que almejam construir o Novo Homem, capaz de sobreviver às intempéries da natureza (e da sua própria) e às convenções sociais (BOTO, 2002). Talvez por essas razões, O Emílio imaginário de Rousseau só devesse ter acesso a uma única obra: As aventuras de Robinson Crusoé (1719) de Daniel Deföe.


Notas:


[1] Trabalho apresentado pela professora Mestranda em Educação e Especialista em Educação Infantil Hercília Maria Fernandes à Banca de Professores Examinadores no Concurso para Professor Substituto (2008.1), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 29 de Janeiro de 2008, durante o processo seletivo para concorrer a cadeira da disciplina Literatura Infantil no curso de Pedagogia/UFRN/CERES/Campus de Caicó-RN.

[2] Todas as referências bibliográficas, citadas no curso das seis partes que integram este estudo, encontram-se presentes no término de: "A Literatura Infantil na Atualidade (Parte VI)". Disponível em: http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/2008/06/literatura-infantil-atravs-dos-tempos.html



A LITERATURA INFANTIL ATRAVÉS DOS TEMPOS (Parte IV)


4 A LITERATURA INFANTIL NO SÉC. XIX: ROMANTISMO X REALISMO[1]


4.1 O interesse pela criança e pela família


Período decisivo para a consolidação da sociedade liberal burguesa, o Séc. XIX representa o apogeu da Era Romântica, quando ocorre o embate entre os valores aristocráticos da Era Clássica com os valores que o individualismo/romântico/plebeu vinha tentando, lentamente, sobrepor. A evolução mental, econômica, cultural e social serviu de base para a mudança de visão de mundo e representação, seja no campo da Literatura e/ou Artes em geral.

Dentro desse processo renovador, a criança é descoberta como um ser que precisa de cuidados específicos para a sua formação e o seu desenvolvimento integral; surge, então, todo um idealismo Romântico em torno da infância, que passa a ser entendida como a “idade de ouro”.

Dando prosseguimento às idéias de Rousseau, Pestalozzi, com bases espiritualistas e humanismo fraternal, proponha uma educação infantil voltada, sobretudo, aos cuidados com as crianças pobres e a integração familiar. No livro Leonardo e Gertrudes, o educador, através da narrativa, propõe aos pais como deve se dá a educação dos filhos. Ver-se, a partir de então, o lastro ideológico liberal burguês que se estende por todo o Séc. XIX e início do Séc. XX (ARCE, 2002)[2].

Também Froebel, seguidor de Pestalozzi, propõe uma educação infantil com base no psicologismo da criança e na expressão mística de sua “divindade interior”. Cria canções, jogos e brinquedos para facilitar a aprendizagem e defende práticas de jardinagem. Ambos os pedagogos tiveram ressonância em quase toda Europa e América e contribuíram para formar a chamada “Pedagogia Maternal”, cuja criança é a semente e, a professora, a jardineira (ARCE, 2002; FERNANDES, 2006).

As idéias de Rousseau, Pestalozzi e Froebel estenderam-se pelo Ocidente e repercutiram sob o processo criativo. As “lições de coisas”, a observação da natureza infantil, a exemplaridade do mestre, etc., encontraram ressonância no meio educacional e na Literatura Infantil.

No Brasil, Rui Barbosa propõe, através dos Pareceres do Ensino Fundamental e Superior, a mudança na mentalidade do professorado, dos métodos de ensino e a introdução de novas disciplinas, com base nas idéias difundidas nos países desenvolvidos. Em todo continente europeu e americano há um esforço “comum” de expansão da cultura letrada a fim de promover a modernidade e modernização das nações; a leitura, o conhecimento empírico, os valores provenientes da “fé cristã” e da “ciência” tornam-se alavancas para o desenvolvimento econômico (GONDRA, 2004).

Essas novas idéias científicas aliadas à fé cristã deram “legitimidade” a um projeto político-ideológico capitalista, cuja leitura, sentimento de nacionalismo e moralismo-cívico constituíram as bases para efetivar o progresso (GONDRA, 2002; 2004).

Dentre os escritores que se destacam, no Séc. XIX, na linha fantástico-maravilhosa encontram-se os Irmãos Grimm, que reúnem contos e narrativas de fundo folclórico, dando um sentido mais humanitário e menos violento às estórias do que Perrault, dentre elas: A bela Adormecida; Os Sete Anões e Branca de Neve; O Chapeuzinho Vermelho; O Pequeno Polegar, etc.. Acerca dos irmãos escritores expressa Coelho (1991, p. 140):


Buscando encontrar as origens da realidade histórica ‘nacional’ [da língua e cultura alemã], os pesquisadores encontram a fantasia, o fantástico, o mítico... E uma grande Literatura Infantil surge para encantar crianças do mundo todo.


Outro nome célebre do séc. XIX é o de Anderson (1805-1875). Sintonizado com os ideais românticos, valores populares, princípios de fraternidade e generosidade humana, o escritor “vai-se revelar uma das vozes mais puras do espírito simples” (COELHO, op. cit., p. 149).

Na produção literária de Anderson evidenciam-se elementos do realismo e do maravilhoso. A maioria de suas narrativas apresenta personagens, espaço e problemáticas retirados da realidade comum; porém, o elemento mágico está em tudo, na harmonia estabelecida entre o Real e a Fantasia. Algumas obras: O Patinho Feio; Os Sapatinhos Vermelhos; O Soldadinho de Chumbo; João e Maria, etc.

Outra expressão de grande repercussão, nesse século, fora Lewis Carrol, escritor de Alice no País das Maravilhas e Alice no País do Espelho, dentro da linha fantástico-maravilhosa. Outras expressões literárias infantis, do final Séc. XIX, foram as chamadas “Viagens Pedagógicas”. Livros que levavam os leitores a conhecerem seus países e regiões por meio de aventuras fantásticas, dentre elas destacam-se: Viagem através da França por dois meninos (1877 / G. Bruno) e A viagem maravilhosa de Nils Holgersson (1907 / Selma Lagerlöf).



Notas:


[1] Trabalho apresentado pela professora Mestranda em Educação e Especialista em Educação Infantil Hercília Maria Fernandes à Banca de Professores Examinadores no Concurso para Professor Substituto (2008.1), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 29 de Janeiro de 2008, durante o processo seletivo para concorrer a cadeira da disciplina Literatura Infantil no curso de Pedagogia/UFRN/CERES/Campus de Caicó-RN.

[2] Todas as referências bibliográficas, citadas no curso das seis partes que integram este estudo, encontram-se presentes no término de: "A Literatura Infantil na Atualidade (Parte VI)". Disponível em: http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/2008/06/literatura-infantil-atravs-dos-tempos.html


A LITERATURA INFANTIL ATRAVÉS DOS TEMPOS (Parte V)


5 A LITERATURA INFANTIL NO BRASIL: DO ENTRE-SÉCULOS AOS DIAS ATUAIS[1]


5.1 A Literatura Infantil brasileira no “Entre-Séculos


No Brasil só se pode falar em uma literatura especificamente infantil por volta do final do século XIX e início do século XX; muito embora desde a implantação da Imprensa Régia, em 1808, tenham surgido as primeiras publicações destinadas às crianças. Porém, é somente nos fins do Séc. XIX que surgem os primeiros “Livros de Leitura” escritos por educadores brasileiros, compostos por traduções e adaptações da Literatura européia a fim de serem disseminados nas escolas.

Zilberman (2003)[2] destaca que a Literatura Infantil brasileira surge no período de transição entre a Monarquia e a República, com a ascensão da burguesia, cujos primeiros textos dirigidos ao leitor-criança apresentam intencionalidades pedagógicas e funcionalidades sociais. As primeiras produções nacionais desenvolvem-se em torno de temáticas pertinentes a exemplaridade cristã, ao moralismo patriótico-cívico e ao didatismo escolar.

No entre-séculos destacam-se, na Literatura Infantil brasileira, conteúdos associados às ideologias e às utopias criadas em torno da civilização e modernização da realidade nacional; servindo como instrumento de legitimação aos interesses da elite burguesa e cultural.

O conjunto das obras dos pioneiros do livro infantil revela a qualidade da formação educacional recebida pelos brasileiros no final do século XIX: uma educação orientada para consolidação dos valores do sistema herdado que reúne uma mescla de feudalismo, aristocratismo, escravagismo, liberalismo e positivismo, destacando-se valores ideológicos de aparelhamento Estatal, dentre os quais (COELHO, 1991):


  • Nacionalismo: ênfase à língua portuguesa falada no Brasil; preocupação em entusiasmar os novos espíritos à dedicação para a pátria; o culto às origens e o amor pela terra, com maior destaque para a idealização da vida no campo em oposição à vida urbana;
  • Intelectualismo: valorização do estudo e do livro, como meios de ascensão e realização social, inclusive econômica;
  • Tradicionalismo cultural: valorização dos grandes autores e das grandes obras do passado como modelos culturais a serem assimilados e imitados;
  • Moralismo e religiosidade: exigência absoluta de retidão de caráter, honestidade, solidariedade, fraternidade, pureza do corpo e da alma, dentro dos preceitos cristãos.

Dentre os autores pioneiros que efetuaram uma Literatura comprometida com a transmissão de valores da época e com o didatismo escolar, destacam-se: César Borges (1824-1891), com O livro do povo (1861); Abílio Antônio Marques Rodrigues (1826-1873), que publicou O método Abílio (1869); Hilário Ribeiro de Andrada e Silva (1847-1886), com A Série Instrutiva (1882); Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), com a obra Contos Infantis (1886); Zalina Rolim (1869-1961) e Francisca Júlia (1871-1920), com as obras Livro das crianças (1897) e O livro da Infância (1899).

Outros nomes de grande destaque no universo escolar, durante o entre-séculos, foram: Felisberto de Carvalho (Livros de Leitura e Série Didática / 1890); Romão Puiggari (Coisas Brasileiras / 1893); Romão Puiggari e Arnaldo de Oliveira Barreto (Série Puiggari / Barreto / 1895); Arnaldo de Oliveira Barreto (Cartilha das Mães / 1895); João Kopke (Livros de Leitura / 1895); Fausto Barreto e Carlos Laet (Antologia Nacional / 1895); e Figueiredo Pimentel (Contos de Carochinha / 1896).


5.2 Conhecendo a pátria Através do Brasil (1910): Olavo Bilac e Manuel Bomfim


Outros escritores também se evidenciaram abundantemente na Literatura infanto-juvenil brasileira - Viriato Correia (Era uma vez / 1908); Arnaldo de Oliveira Barreto (Biblioteca Infantil / 1915) e Tales de Andrade (Saudade / 1919) -, mas, fora, sem sombra de dúvida, o escritor Olavo Bilac (1865-1918) uma das maiores expressões literárias do gênero infantil, no Brasil, no início do século XX.

Olavo Bilac expressa bem a linha nacionalista no panorama do gênero infantil, onde se observam os esforços do escritor em disseminar uma cultura de civismo e patriotismo. Seu nome, conjuntamente com o de Afonso Celso, exprime os ideais do nacionalismo ufano, cujas idéias centrais giram em torno do amor à Pátria e à evocação ao militarismo.

Um dos grandes sucessos na literatura escolar brasileira fora Através do Brasil (1910), obra escrita conjuntamente com o educador Manuel Bonfim (1868/1932). O livro estrutura-se mediante a orientação nacionalista e segue o gênero “viagem pedagógica”, que iniciara na Europa, na segunda metade do século XIX. A grande novidade que o livro traz, à época, é a unidade narrativa. Unindo o útil e o agradável, os autores desenvolvem as aventuras de dois irmãos órfãos e um amigo que, por várias circunstâncias, viajam pelo País. A narrativa, dando maior ênfase às terras do São Francisco, desencadeia informações históricas, geográficas ou de ciências naturais, e situações dramáticas e/ou pitorescas.

Os valores ideológicos imbuídos em Através do Brasil expressam o idealismo da época, valores que se manifestam em torno do ideário nacionalista amparado nas concepções filosófico-educacionais modernas, associados ao processo de expansão da escola, difusão e massificação da leitura literária às classes populares.

Os intelectuais compartilhavam das mesmas inquietações sobre a problemática educacional; dedicando-se ao trabalho de escrever livros à instrução primária. Para Lajolo (1982), Bilac e Bonfim detinham “a faca e o queijo na mão: além de uma edificante tarefa patriótica, uma promissora fonte de renda, assegurada pela facilidade com que seus livros seriam adotados”.

Além de Através do Brasil, Bilac escreve, em parceria com Coelho Neto, Contos Pátrios e A Pátria Brasileira. No gênero poesia infantil, publica Poesias Infantis (1904), obra de grande sucesso até a segunda metade do Séc. XX.



5.3 Monteiro Lobato e a literatura infantil, um marco histórico


Coube a Monteiro Lobato (1882-1948) a tarefa de instaurar o “divisor de águas” que separa o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Fazendo a herança do passado vigorar sobre o seu tempo, Lobato alcança “o caminho criador que a literatura infantil estava necessitando. Rompe, pela raiz, com as convenções estereotipadas e abre as portas para as novas idéias e formas que o nosso século exigia (COELHO, 1991, p. 223).

Monteiro Lobato estréia, no gênero infantil, em 1921, com a obra A Menina do Narizinho Arrebitado, obra que abre caminhos para uma série de publicações de livros infantis, todos com ampla aceitação do público infanto-juvenil, em torno da turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Para Coelho (1991), com certo tempo e enriquecimento do fabuloso mundo lobatiano, o Maravilhoso passa a compor normalmente o Real e, em lugar de se tornar inverossímil, se “des-realizando”, o processo acaba sendo o contrário, isto é, “o inventado passa a ter foros de realidade". Lobato, rompendo com os modelos extraídos da Europa, sobretudo de Cuore (Edmundo de Amicis/1846-1908), enfatizava a necessidade de se criar uma Literatura Infantil nacional onde as crianças pudessem “morar”. Em suas palavras:


Ando com idéias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoé de Laemmert. Ainda acabo escrevendo livros onde as crianças possam morar. Não ler e jogar fora, sim morar, como morei no Robinson e n’Os filhos do Capitão Grant (LOBATO, apud COELHO, 1991, p. 228).


E, Lobato fizera muitas crianças morarem em seus livros, dos anos de 1920 aos posteriores sua obra resiste às mudanças do tempo, alcançando a qualidade da eternidade. Desde 1926, o escritor tivera seus livros traduzidos em vários países, dentre eles: Alemanha, Argentina, Espanha, França, Síria; o que comprova que Lobato conseguira unir ingredientes que permitiu a eternidade de sua criação. Fórmula composta a partir da fusão da essência humana e universal com a sua busca pelo nacional. Fato que possibilita a passagem de suas obras para além fronteiras do país, e faz com que milhares de crianças habitem o fantástico mundo do Sítio do Pica-Pau Amarelo; estendendo repercussões até os dias atuais, já que a turminha do Sítio voltara a morar na tela da televisão brasileira, no início do século XXI.

A obra lobatiana na área infantil é vasta, engloba livros originais, adaptações e traduções. Nas publicações originais, destacam-se: A menina do Narizinho Arrebitado (1920); Narizinho Arrebitado - 2◦ Livro de Leitura e O Saci (1921); Fábulas e O Marquês de Rabicó (1922); A Caçada da Onça (1924); A Cara de Coruja, Aventuras do Príncipe, Noivado do Narizinho e O Circo de Cavalinho (1927); A Pena do Papagaio e O Pó de Pirlipimpim (1930); As Reinações de Narizinho (1931); Viagem ao Céu (1932); As Caçadas de Pedrinho e Emília no País da Gramática (1933); Geografia de Dona Benta (1935); Memórias de Emília (1936); O Poço do Visconde (1937); O Pica-Pau Amarelo (1939) e a Chave do Tamanho (1942).

Essas obras, constituídas por narrativas aventurescas, desenrolam fatos fascinantes, personagens e celebridades que se originaram da criatividade lobatiana e na memória dos tempos, seja através da história, tradição oral, lendas e/ou mitos. Essa mistura de imaginário, conhecimentos e heranças histórico-culturais da humanidade expressa a originalidade da obra de Monteiro Lobato, que busca: “redescobrir realidades estáticas, cristalizadas pela memória cultural, e dar-lhes nova vida, em meio às reinações do pessoal que vive no Sítio do Pica-Pau Amarelo” (COELHO, 1991, p. 230).



5.4 Cecília Meireles e os Livros de Formação


Cecília Meireles (1901-1964), após a estréia na Literatura com a obra Espectros (1919), dedica-se intensamente à educação, desenvolvendo, além da docência e da militância política em jornais brasileiros (Cf. LAMEGO, 1996), uma ação pedagógica não-formal junto à criança brasileira por meio da literatura infantil.

Em 1924, Cecília publica Criança meu amor, obra de abertura da poetisa dentro do gênero infantil. Em 1937, em parceria com o médico Josué de Castro, publica A festa das letras. Obra poética cujos textos obedecem a seqüência de um abecedário e desenvolvem a temática alimentação e saúde. Ainda nos fins da década de 1930, a poetisa publica Rute e Alberto resolveram ser turistas (1939), livro que trabalha, a partir de situações narradas, o conhecimento histórico e geográfico por meio das aventuras das crianças-personagens na cidade do Rio de Janeiro. Em 1949, a autora publica Rui: pequena história de uma grande vida; e, em 1964, a sua grande obra poética dentro do gênero infantil: Ou isto ou aquilo.

Conforme a opinião de vários estudiosos da poetisa-educadora (CAMARGO, 2000; NEVES, 2001, ZILBERMAN, 2001, et. al.), Cecília Meireles, conjuntamente com Monteiro Lobato e Vinícius de Moraes, fora responsável pela renovação da Literatura Infantil brasileira dando maior ênfase aos sentimentos da criança, ao imaginário, e a beleza poética propriamente dita. Todavia, seus primeiros livros trazem bastante vivos os ideais do tradicionalismo literário que permeou a sua produção artística dentro do gênero infantil, destacando-se algumas características:


  • Idealismo: apresentação romântica da criança e daquilo que lhe é pertinente: família, escola, sociedade;
  • Moralismo e maniqueísmo dogmático: ênfase a moral, ao valor da educação intelectual, lingüística e ao desenvolvimento emotivo da criança, porém pela perspectiva adulta que manipula as ações do leitor;
  • Universalismo e Tradicionalismo: na valorização da linguagem erudita, na exposição dos temas e nos conteúdos; através daquilo que é comum ao homem e permanece historicamente e na utilização das fontes orais e do folclore;
  • Literariedade e imaginação: valorização da Beleza poética, do sonho, dos devaneios infantis, das faculdades intuitivas.

Algumas dessas características permaneceram imutáveis no conjunto da obra de Cecília Meireles, como, por exemplo, os aspectos formativos, instrutivos e de entretenimento intrínsecos aos livros infantis da autora. Mesmo na obra Ou isto ou aquilo (1964), onde a natureza estética se evidencia acima das intencionalidades pedagógicas e funcionalidades sociais, há a evidência do caráter moralizante de uma educadora que busca ofertar ensinamentos úteis à formação da criança (NEVES, s/d; FERNANDES, 2006). Como se pode observar no poema abaixo (MEIRELES, 2002, p. 15):


É a moda
da menina muda
da menina trombuda
que muda de modo
e dá medo.

(A menina mimada!)

É a moda da menina muda
que muda de modo
e já não é trombuda.

(A menina amada!)


Entretanto, é com Cecília Meireles e Vinícius de Morais que a Literatura Infantil brasileira abre portas para o paradigma estético, anunciando a importância do lúdico para a vivência e formação da criança (CAMARGO, 2000). Em Cecília, o paradigma utilitarista, moral-cívico, rompe-se com a obra Ou isto ou aquilo. E, em Vinícius de Moraes com a publicação da obra A arca de Noé (1970). Nessa obra, Vinícius explora o jogo sonoro, a perspectiva infantil assumida pela voz poética, o humor e aproveita recursos típicos da poesia popular como a quadra, a redondilha e a rima nos versos pares, além da temática animal, um dos temas de maior empatia junto as crianças.



Notas:

[1] Trabalho apresentado pela professora Mestranda em Educação e Especialista em Educação Infantil Hercília Maria Fernandes à Banca de Professores Examinadores no Concurso para Professor Substituto (2008.1), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 29 de Janeiro de 2008, durante o processo seletivo para concorrer a cadeira da disciplina Literatura Infantil no curso de Pedagogia/UFRN/CERES/Campus de Caicó-RN.

[2] Todas as referências bibliográficas, citadas no curso das seis partes que integram este estudo, encontram-se presentes no término de: "A Literatura Infantil na Atualidade (Parte VI)". Disponível em: http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/2008/06/literatura-infantil-atravs-dos-tempos.html



A LITERATURA INFANTIL ATRAVÉS DOS TEMPOS (Parte VI)


6 A LITERATURA INFANTIL NA ATUALIDADE[1]


6.1 O paradigma lúdico


A produção literária infantil brasileira vive uma nova fase. A partir da segunda metade do Séc. XX com as novas idéias em torno da criança e de sua aprendizagem, sobretudo com a difusão das novas pesquisas psicolingüísticas em torno do ludismo e da socialização infantil; fermenta uma forma diferente de conceber a Literatura Infantil e o seu papel socializador à educação da criança, provocando o surgimento do paradigma lúdico.

As teorias de Dewey, Montessori, Declory, Claparède, Piaget, Vigotski e pesquisadores do imaginário como Bachelard e Huizinga, abrem caminhos para uma nova compreensão de criança, da aquisição da linguagem, da importância do imaginário e ludismo para o desenvolvimento integral humano. Fatos que se comprovam através das mudanças ocorridas, no curso do Séc. XX, nas leis educacionais e nos vários documentos difundidos pelo Ministério da Educação no universo educacional (Cf. COELHO, 1991).

As brincadeiras, as imagens, os jogos, as canções, os diversos brinquedos, sejam eles concretos ou simbólicos, são levados em consideração, pelos escritores, durante o processo criativo. O visual e o jogo lingüístico passam a ter importância dentro do gênero infantil, é o caso da Literatura em Quadrinhos; já existente, no Brasil, desde 1905 com a Revista O Tico-Tico. Porém, a produção em quadrinhos encontrará bastante repercussão nos anos de 1940 com a produção dos super heróis, detetives e aventuras que resultam da fusão entre o maravilhoso e a ciência. Também destacam-se, dentro do gênero, o Teatrinho Infanto/Juvenil e a qualidade das ilustrações dos livros infantis; isso mostra o quanto passou-se a valorizar as imagens e os jogos lúdicos no meio artístico e na produção literária infanto-juvenil.

Alguns autores chegaram mesmo a conceitualizar a arte literária infantil como “brinquedo” e/ou “jogo”, como é o caso de José Paulo Paes, no poema Convite, referindo-se à poesia infantil (PAES, 1996, p. 14):


Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.


Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.


As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.

Como a água do rio
que é água sempre nova.

Como cada dia
que é sempre um novo dia.


Vamos brincar de poesia?


A partir das décadas de 1950/1960 a Literatura Infantil rompe com o “realismo pedagógico” imposto nos anos de 1930/1940 e redescobre a fantasia, principalmente através da fusão do Real com o Imaginário. Dentre os nomes que se destacam a partir dos anos de 1950, incluem-se: Lúcia Machado de Almeida com a obra Aventuras de Xisto (1957), e a produção infantil de vários autores, dentre eles: Ana Maria Machado, Lygia Fagundes Bojunga Nunes, Ziraldo, Ruth Rocha, Luís Camargo, Ricardo Azevedo, etc.

Na área de poesia infantil nomes como o de Cecília Meireles com a obra Ou isto ou aquilo; Vinícius de Moraes com A arca de Noé, José Paulo Paes com o livro Poesias para crianças e demais obras se destacam na Literatura Infantil Brasileira; assim como os escritores Mário Quintana, Elias José, Pedro Bandeira, Roseana Murray, Sylvia Orthof, etc.


6.2 A Literatura Infantil na Era Virtual: crise ou renovação?


Para Coelho (1991) atualmente não existe mais um ideal absoluto de Literatura Infantil; no entanto podem-se observar algumas características, pertinentes aos livros infantis, que evidenciam as três principais tendências atuais dentro do gênero; destacando-as:


  • A Literatura realista: pretende expressar o Real conforme o testemunho do mundo cotidiano e informar costumes, hábitos, valores e diversos conhecimentos que conscientizem o leitor infantil, bem como apelar para a curiosidade, argúcia e preparar o leitor para enfrentar psicologicamente, sem ilusões, a vida prática;
  • A literatura fantasista: apresenta o mundo maravilhoso, poético, criado pela imaginação e pelo sonho; que existe fora dos limites do Real e do senso comum; Prevalecendo, nesse universo literário, o lúdico ou o jogo sobre as experiências reais;
  • A literatura híbrida: parte do Real e nele introduz o Imaginário ou a fantasia, anulando os limites entre um e outro. Os universos por ela criados integram a linha do Realismo Mágico, onde se introduzem em fatos e cotidianos já conhecidos pela criança o inesperado, o fantástico, o maravilhoso; é a linha da qual Monteiro Lobato brilhantemente introduzira já no início do Séc. XX.

Apesar da crescente circulação de livros infantis no mercado editorial e no universo educacional, muitos teóricos e escritores compartilham de um certo receio no tocante a dominação das imagens na chamada Era Virtual, Era que se inicia com o aparecimento do Cinema e da Televisão; e, hoje, se expande amplamente com a globalização, com a facilidade de acesso a que crianças e adolescentes dispõem por meio da Internet.

No tocante a imagem televisiva, Cecília Meireles enfatizara, já nos fins da década de 1940, sobre os perigos das imagens imediatas para a formação do leitor; refletindo que a infância não tem sido poupada das “duras penas” da realidade, visto que predomina na atualidade uma subversão de valores onde o vilão tornou-se o herói, e o homem bom é considerado o fraco na narrativa da vida real. Para Cecília, essa subversão de valores humanos distorce e maltrata a identidade da criança, podendo marcar decisivamente a sua vida. Em suas palavras:


Dentro da subversão, palpitam infâncias: infâncias que assistem de olhos assombrados cenas que nenhum autor se atreveria a contar-lhes. Cenas vivas e vividas – não escritas. Se o que lê não se esquece, como esquecerá o que se vê? (MEIRELES, 1984, p. 134).


Coelho (2003), apresentando questionamentos sobre a existência de uma possível crise do livro infantil, alude ao fato de que as imagens dos sites, blogs, jogos e demais locais da Internet por serem mais facilmente manipulados e assimilados pela criança, podem levar a um processo de alienação e desvalorização da leitura como fonte imprescindível de conhecimento e formação humana.

Por outro lado, há quem argumente que a mídia eletrônica e a comunicação via Rede, basicamente, se realizam por um sistema textual. Exigindo a codificação / decodificação de signos, e a compreensão entre significantes e significados, aspectos que favorecem à plurissignificação textual - quesito básico para a compreensão literária -; e, portanto, para a formação do leitor. É o caso da escritora, idealizadora e administradora do site Doce de Letra (www.docedeletra.com.br), Rosa Amanda Strausz, em artigo publicado no livro Trajetória de sentidos (STRAUSZ, 2003).

Seja de que modo for..., o que se evidencia nas falas dos teóricos e escritores de um modo geral é a importância conferida à Literatura Infantil para a formação, socialização e desenvolvimento da criança em seus vários aspectos. Se há no uso da imagem imediata elementos que podem favorecer à formação do leitor, igualmente existem os riscos de desaculturação em razão do poder que a imagem e a velocidade exercem sobre as mentes humanas. Porém, numa perspectiva otimista, crer-se que o Livro está longe de ser substituído enquanto houver, no homem, a necessidade de produzir e, conseqüentemente, de apreciar arte.




Nota:


[1] Trabalho apresentado pela professora Mestranda em Educação e Especialista em Educação Infantil Hercília Maria Fernandes à Banca de Professores Examinadores no Concurso para Professor Substituto (2008.1), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 29 de Janeiro de 2008, durante o processo seletivo para concorrer a cadeira da disciplina Literatura Infantil no curso de Pedagogia/UFRN/CERES/Campus de Caicó-RN.


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