segunda-feira, 16 de junho de 2008

A LITERATURA INFANTIL ATRAVÉS DOS TEMPOS (Parte V)


5 A LITERATURA INFANTIL NO BRASIL: DO ENTRE-SÉCULOS AOS DIAS ATUAIS[1]


5.1 A Literatura Infantil brasileira no “Entre-Séculos


No Brasil só se pode falar em uma literatura especificamente infantil por volta do final do século XIX e início do século XX; muito embora desde a implantação da Imprensa Régia, em 1808, tenham surgido as primeiras publicações destinadas às crianças. Porém, é somente nos fins do Séc. XIX que surgem os primeiros “Livros de Leitura” escritos por educadores brasileiros, compostos por traduções e adaptações da Literatura européia a fim de serem disseminados nas escolas.

Zilberman (2003)[2] destaca que a Literatura Infantil brasileira surge no período de transição entre a Monarquia e a República, com a ascensão da burguesia, cujos primeiros textos dirigidos ao leitor-criança apresentam intencionalidades pedagógicas e funcionalidades sociais. As primeiras produções nacionais desenvolvem-se em torno de temáticas pertinentes a exemplaridade cristã, ao moralismo patriótico-cívico e ao didatismo escolar.

No entre-séculos destacam-se, na Literatura Infantil brasileira, conteúdos associados às ideologias e às utopias criadas em torno da civilização e modernização da realidade nacional; servindo como instrumento de legitimação aos interesses da elite burguesa e cultural.

O conjunto das obras dos pioneiros do livro infantil revela a qualidade da formação educacional recebida pelos brasileiros no final do século XIX: uma educação orientada para consolidação dos valores do sistema herdado que reúne uma mescla de feudalismo, aristocratismo, escravagismo, liberalismo e positivismo, destacando-se valores ideológicos de aparelhamento Estatal, dentre os quais (COELHO, 1991):


  • Nacionalismo: ênfase à língua portuguesa falada no Brasil; preocupação em entusiasmar os novos espíritos à dedicação para a pátria; o culto às origens e o amor pela terra, com maior destaque para a idealização da vida no campo em oposição à vida urbana;
  • Intelectualismo: valorização do estudo e do livro, como meios de ascensão e realização social, inclusive econômica;
  • Tradicionalismo cultural: valorização dos grandes autores e das grandes obras do passado como modelos culturais a serem assimilados e imitados;
  • Moralismo e religiosidade: exigência absoluta de retidão de caráter, honestidade, solidariedade, fraternidade, pureza do corpo e da alma, dentro dos preceitos cristãos.

Dentre os autores pioneiros que efetuaram uma Literatura comprometida com a transmissão de valores da época e com o didatismo escolar, destacam-se: César Borges (1824-1891), com O livro do povo (1861); Abílio Antônio Marques Rodrigues (1826-1873), que publicou O método Abílio (1869); Hilário Ribeiro de Andrada e Silva (1847-1886), com A Série Instrutiva (1882); Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), com a obra Contos Infantis (1886); Zalina Rolim (1869-1961) e Francisca Júlia (1871-1920), com as obras Livro das crianças (1897) e O livro da Infância (1899).

Outros nomes de grande destaque no universo escolar, durante o entre-séculos, foram: Felisberto de Carvalho (Livros de Leitura e Série Didática / 1890); Romão Puiggari (Coisas Brasileiras / 1893); Romão Puiggari e Arnaldo de Oliveira Barreto (Série Puiggari / Barreto / 1895); Arnaldo de Oliveira Barreto (Cartilha das Mães / 1895); João Kopke (Livros de Leitura / 1895); Fausto Barreto e Carlos Laet (Antologia Nacional / 1895); e Figueiredo Pimentel (Contos de Carochinha / 1896).


5.2 Conhecendo a pátria Através do Brasil (1910): Olavo Bilac e Manuel Bomfim


Outros escritores também se evidenciaram abundantemente na Literatura infanto-juvenil brasileira - Viriato Correia (Era uma vez / 1908); Arnaldo de Oliveira Barreto (Biblioteca Infantil / 1915) e Tales de Andrade (Saudade / 1919) -, mas, fora, sem sombra de dúvida, o escritor Olavo Bilac (1865-1918) uma das maiores expressões literárias do gênero infantil, no Brasil, no início do século XX.

Olavo Bilac expressa bem a linha nacionalista no panorama do gênero infantil, onde se observam os esforços do escritor em disseminar uma cultura de civismo e patriotismo. Seu nome, conjuntamente com o de Afonso Celso, exprime os ideais do nacionalismo ufano, cujas idéias centrais giram em torno do amor à Pátria e à evocação ao militarismo.

Um dos grandes sucessos na literatura escolar brasileira fora Através do Brasil (1910), obra escrita conjuntamente com o educador Manuel Bonfim (1868/1932). O livro estrutura-se mediante a orientação nacionalista e segue o gênero “viagem pedagógica”, que iniciara na Europa, na segunda metade do século XIX. A grande novidade que o livro traz, à época, é a unidade narrativa. Unindo o útil e o agradável, os autores desenvolvem as aventuras de dois irmãos órfãos e um amigo que, por várias circunstâncias, viajam pelo País. A narrativa, dando maior ênfase às terras do São Francisco, desencadeia informações históricas, geográficas ou de ciências naturais, e situações dramáticas e/ou pitorescas.

Os valores ideológicos imbuídos em Através do Brasil expressam o idealismo da época, valores que se manifestam em torno do ideário nacionalista amparado nas concepções filosófico-educacionais modernas, associados ao processo de expansão da escola, difusão e massificação da leitura literária às classes populares.

Os intelectuais compartilhavam das mesmas inquietações sobre a problemática educacional; dedicando-se ao trabalho de escrever livros à instrução primária. Para Lajolo (1982), Bilac e Bonfim detinham “a faca e o queijo na mão: além de uma edificante tarefa patriótica, uma promissora fonte de renda, assegurada pela facilidade com que seus livros seriam adotados”.

Além de Através do Brasil, Bilac escreve, em parceria com Coelho Neto, Contos Pátrios e A Pátria Brasileira. No gênero poesia infantil, publica Poesias Infantis (1904), obra de grande sucesso até a segunda metade do Séc. XX.



5.3 Monteiro Lobato e a literatura infantil, um marco histórico


Coube a Monteiro Lobato (1882-1948) a tarefa de instaurar o “divisor de águas” que separa o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Fazendo a herança do passado vigorar sobre o seu tempo, Lobato alcança “o caminho criador que a literatura infantil estava necessitando. Rompe, pela raiz, com as convenções estereotipadas e abre as portas para as novas idéias e formas que o nosso século exigia (COELHO, 1991, p. 223).

Monteiro Lobato estréia, no gênero infantil, em 1921, com a obra A Menina do Narizinho Arrebitado, obra que abre caminhos para uma série de publicações de livros infantis, todos com ampla aceitação do público infanto-juvenil, em torno da turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Para Coelho (1991), com certo tempo e enriquecimento do fabuloso mundo lobatiano, o Maravilhoso passa a compor normalmente o Real e, em lugar de se tornar inverossímil, se “des-realizando”, o processo acaba sendo o contrário, isto é, “o inventado passa a ter foros de realidade". Lobato, rompendo com os modelos extraídos da Europa, sobretudo de Cuore (Edmundo de Amicis/1846-1908), enfatizava a necessidade de se criar uma Literatura Infantil nacional onde as crianças pudessem “morar”. Em suas palavras:


Ando com idéias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do Robinson Crusoé de Laemmert. Ainda acabo escrevendo livros onde as crianças possam morar. Não ler e jogar fora, sim morar, como morei no Robinson e n’Os filhos do Capitão Grant (LOBATO, apud COELHO, 1991, p. 228).


E, Lobato fizera muitas crianças morarem em seus livros, dos anos de 1920 aos posteriores sua obra resiste às mudanças do tempo, alcançando a qualidade da eternidade. Desde 1926, o escritor tivera seus livros traduzidos em vários países, dentre eles: Alemanha, Argentina, Espanha, França, Síria; o que comprova que Lobato conseguira unir ingredientes que permitiu a eternidade de sua criação. Fórmula composta a partir da fusão da essência humana e universal com a sua busca pelo nacional. Fato que possibilita a passagem de suas obras para além fronteiras do país, e faz com que milhares de crianças habitem o fantástico mundo do Sítio do Pica-Pau Amarelo; estendendo repercussões até os dias atuais, já que a turminha do Sítio voltara a morar na tela da televisão brasileira, no início do século XXI.

A obra lobatiana na área infantil é vasta, engloba livros originais, adaptações e traduções. Nas publicações originais, destacam-se: A menina do Narizinho Arrebitado (1920); Narizinho Arrebitado - 2◦ Livro de Leitura e O Saci (1921); Fábulas e O Marquês de Rabicó (1922); A Caçada da Onça (1924); A Cara de Coruja, Aventuras do Príncipe, Noivado do Narizinho e O Circo de Cavalinho (1927); A Pena do Papagaio e O Pó de Pirlipimpim (1930); As Reinações de Narizinho (1931); Viagem ao Céu (1932); As Caçadas de Pedrinho e Emília no País da Gramática (1933); Geografia de Dona Benta (1935); Memórias de Emília (1936); O Poço do Visconde (1937); O Pica-Pau Amarelo (1939) e a Chave do Tamanho (1942).

Essas obras, constituídas por narrativas aventurescas, desenrolam fatos fascinantes, personagens e celebridades que se originaram da criatividade lobatiana e na memória dos tempos, seja através da história, tradição oral, lendas e/ou mitos. Essa mistura de imaginário, conhecimentos e heranças histórico-culturais da humanidade expressa a originalidade da obra de Monteiro Lobato, que busca: “redescobrir realidades estáticas, cristalizadas pela memória cultural, e dar-lhes nova vida, em meio às reinações do pessoal que vive no Sítio do Pica-Pau Amarelo” (COELHO, 1991, p. 230).



5.4 Cecília Meireles e os Livros de Formação


Cecília Meireles (1901-1964), após a estréia na Literatura com a obra Espectros (1919), dedica-se intensamente à educação, desenvolvendo, além da docência e da militância política em jornais brasileiros (Cf. LAMEGO, 1996), uma ação pedagógica não-formal junto à criança brasileira por meio da literatura infantil.

Em 1924, Cecília publica Criança meu amor, obra de abertura da poetisa dentro do gênero infantil. Em 1937, em parceria com o médico Josué de Castro, publica A festa das letras. Obra poética cujos textos obedecem a seqüência de um abecedário e desenvolvem a temática alimentação e saúde. Ainda nos fins da década de 1930, a poetisa publica Rute e Alberto resolveram ser turistas (1939), livro que trabalha, a partir de situações narradas, o conhecimento histórico e geográfico por meio das aventuras das crianças-personagens na cidade do Rio de Janeiro. Em 1949, a autora publica Rui: pequena história de uma grande vida; e, em 1964, a sua grande obra poética dentro do gênero infantil: Ou isto ou aquilo.

Conforme a opinião de vários estudiosos da poetisa-educadora (CAMARGO, 2000; NEVES, 2001, ZILBERMAN, 2001, et. al.), Cecília Meireles, conjuntamente com Monteiro Lobato e Vinícius de Moraes, fora responsável pela renovação da Literatura Infantil brasileira dando maior ênfase aos sentimentos da criança, ao imaginário, e a beleza poética propriamente dita. Todavia, seus primeiros livros trazem bastante vivos os ideais do tradicionalismo literário que permeou a sua produção artística dentro do gênero infantil, destacando-se algumas características:


  • Idealismo: apresentação romântica da criança e daquilo que lhe é pertinente: família, escola, sociedade;
  • Moralismo e maniqueísmo dogmático: ênfase a moral, ao valor da educação intelectual, lingüística e ao desenvolvimento emotivo da criança, porém pela perspectiva adulta que manipula as ações do leitor;
  • Universalismo e Tradicionalismo: na valorização da linguagem erudita, na exposição dos temas e nos conteúdos; através daquilo que é comum ao homem e permanece historicamente e na utilização das fontes orais e do folclore;
  • Literariedade e imaginação: valorização da Beleza poética, do sonho, dos devaneios infantis, das faculdades intuitivas.

Algumas dessas características permaneceram imutáveis no conjunto da obra de Cecília Meireles, como, por exemplo, os aspectos formativos, instrutivos e de entretenimento intrínsecos aos livros infantis da autora. Mesmo na obra Ou isto ou aquilo (1964), onde a natureza estética se evidencia acima das intencionalidades pedagógicas e funcionalidades sociais, há a evidência do caráter moralizante de uma educadora que busca ofertar ensinamentos úteis à formação da criança (NEVES, s/d; FERNANDES, 2006). Como se pode observar no poema abaixo (MEIRELES, 2002, p. 15):


É a moda
da menina muda
da menina trombuda
que muda de modo
e dá medo.

(A menina mimada!)

É a moda da menina muda
que muda de modo
e já não é trombuda.

(A menina amada!)


Entretanto, é com Cecília Meireles e Vinícius de Morais que a Literatura Infantil brasileira abre portas para o paradigma estético, anunciando a importância do lúdico para a vivência e formação da criança (CAMARGO, 2000). Em Cecília, o paradigma utilitarista, moral-cívico, rompe-se com a obra Ou isto ou aquilo. E, em Vinícius de Moraes com a publicação da obra A arca de Noé (1970). Nessa obra, Vinícius explora o jogo sonoro, a perspectiva infantil assumida pela voz poética, o humor e aproveita recursos típicos da poesia popular como a quadra, a redondilha e a rima nos versos pares, além da temática animal, um dos temas de maior empatia junto as crianças.



Notas:

[1] Trabalho apresentado pela professora Mestranda em Educação e Especialista em Educação Infantil Hercília Maria Fernandes à Banca de Professores Examinadores no Concurso para Professor Substituto (2008.1), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 29 de Janeiro de 2008, durante o processo seletivo para concorrer a cadeira da disciplina Literatura Infantil no curso de Pedagogia/UFRN/CERES/Campus de Caicó-RN.

[2] Todas as referências bibliográficas, citadas no curso das seis partes que integram este estudo, encontram-se presentes no término de: "A Literatura Infantil na Atualidade (Parte VI)". Disponível em: http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/2008/06/literatura-infantil-atravs-dos-tempos.html



Um comentário:

  1. Aplausos! Ainda bem que os brasileiros como Monteiro Lobato e Cecília Meirelles existiram. Sente-se a mudança brutal na leveza da preocupação desses seres maravilhosos. Somados ao Vinícius, é claro.
    Fenomenal!!!!
    Parabéns!

    Beijos
    Mirze

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