terça-feira, 4 de março de 2008

Anseio e plenitude no poema da maçã



Quando chegas
...
Deserto florido
Vazio preenchido
Frio agasalhado
Lágrima controlada
Abandono abraçado
Saudade esquecida
Desejo incontido
Descompassos cardíacos
Reticências
...

(By Taninha Nascimento)


Taninha Nascimento[1], no poema intitulado “Quando chegas”, postado no blog “No rastro da poesia[2]”, descreve o fenômeno da paixão. O amor em seu estado sensual, portanto primitivo; desejo humano de aventurar-se em busca de completude e satisfação, cuja realização se viabiliza por meio da fusão: “eu-outro”. Paixão = desejo que, canalizando atmosferas e energias, se move também à composição.
Todavia, antes de entrar propriamente na análise do texto, convêm que se faça, aqui, algumas breves considerações sobre a análise literária e o papel do analista no processo de decomposição do texto poético.
O processo de interpretação envolve uma dinâmica de desvelamento da tessitura textual, já que o texto literário comporta, além de realidades supostamente aparentes, personificações criadas pela “livre imaginação” e “invenção lógica” do artista que materializam um universo análogo à vida imediata. Assim, o poema é sempre uma “invenção” do autor sobre si mesmo e sobre o outro/mundo através de combinações entre as funções do real e irreal.
Contrariamente ao que se pensa, a análise literária não tem como objetivo penetrar na subjetividade do autor, nem tampouco reconstruir o seu passado histórico, através da inferência postulada entre prováveis causas e efeitos que remetem o artista à tarefa da composição, mas realizar a leitura das "atmosferas poéticas" suscitadas no próprio texto. Assim, diz Bachelard: “O poeta não me confia o passado de sua imagem e, no entanto, sua imagem se enraíza em mim” (1978, p. 184)[3].
No entanto, é preciso estabelecer direcionamentos para se realizar a análise. Caso contrário, a tarefa do analista tende para livres divagações sem que haja, no entanto, certa coerência e clareza na interpretação. Agindo com sistematicidade, a análise literária exerce uma função didática à compreensão da obra, já que postula interpretações que tencionam clarificar os elementos constitutivos do texto que passam despercebidos e/ou dificultam o entendimento do leitor. A esse respeito diz Massaud Moisés (1984, p. 22)[4]: “A análise literária constitui, precipuamente, um modo de ler, de ver o texto e de, portanto, ensinar a ler e a ver”.
Dentro dessa perspectiva, propõe-se aqui realizar o desmembramento do poema “Quando chegas” considerando as atmosferas poéticas existentes no próprio texto e o emprego de algumas figuras de linguagem que evidencia o estado emotivo-criativo do eu-lírico; capaz de ilustrar situações antagônicas e, simultaneamente, equilibradas no emaranhado das relações propostas, cujo desenlace se efetiva em torno da problemática existencial do amor sensual.

Escassez e fertilidade no “fruto proibido”

Em “Quando chegas”, os versos simples, musicais, doces apresentam-se, no entanto, enriquecidos pela presença de “antíteses” que ilustram a variação do estado emotivo do eu-lírico durante o processo de criação. O primeiro aspecto que se percebe no texto é a elaboração visual. Há uma intenção clara na composição: levar o leitor à atribuição de sentidos. Para tanto, o poema apresenta-se ilustrado pela imagem de uma maçã; e, como se sabe, desde Eva e Adão, a formosa fruta envolve uma simbologia que sintetiza os desejos vis humanos, as paixões mundanas, os interditos e/as situações passíveis de concretude.
O formato do texto também apresenta um certo “concretismo” ao apresentar versos que vão, gradativamente, formando o objeto de sua composição: "o fruto proibido” que, no poema, equivale ao objeto de anseio e busca. É a satisfação temporal desencadeada por esse “ser” misterioso, portanto a temática central desenvolvida na escrita, cuja criação faz questão de “racionalmente” encobrir. Fato que se pode considerar quando se realiza o desmembramento das partes que estruturam o todo textual. Vejamos alguns desses membros desencadeadores:
O título do poema – “Quando chegas” – já oferece ao leitor elementos de compreensão, funcionando como uma espécie de primeiro verso. Após o título segue uma pequena pausa por meio do uso de “reticências” que servem para ocultar uma dada realidade. As reticências indicam que ocorre uma série de reações sensitivas “quando algo subitamente pode acontecer”, ou melhor: “Quando [tu] chegas”! O emprego do verbo na segunda pessoa do singular e o uso do tempo verbal presente indica que há a presença de um ser/outro concreto e de um espaço real dentro do universo criativo do eu-lírico, onde as coisas podem se materializar; já que quem chega, chega sempre a algum lugar e para alguém.
Segue, então, um conjunto de associações “opostas” postulando, através de antíteses, paradoxos entre os signos, conforme se pode observar nos primeiros versos: “Deserto florido” / “Vazio preenchido” / “Frio agasalhado” / “Lágrima controlada” / “Abandono abraçado” / “Saudade esquecida”.
Entretanto, as antíteses funcionam no poema não como elementos de contradição, mas de aproximação entre realidades sensivelmente sentidas. Por isso, há também, nesses versos, o emprego da “sinestesia” que confirma a existência de sensações visuais, táteis e, efemeramente, palpáveis no emaranhado ilustrativo das atmosferas poéticas.
Conforme se sabe, dentro do universo poético, os poetas descrevem os desejos e as paixões por exercícios de aproximação entre opostos. É um exemplo clássico desse recurso emotivo-estilístico o soneto de Camões “Amor é um fogo que arde sem se ver”, cujos versos buscam aproximar situações aparentemente opostas, como se pode ler na primeira estrofe do texto:


Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer[5].


Os primeiros versos do texto “Quando chegas” demonstram as variações psíquicas existentes no estado emotivo do eu-sentimental, configurando o “antes e o depois” dos estados psicoafetivos. Dessa forma, os versos destacam os anseios anteriores à realização dos acontecimentos e as sensações de bem-estar pós-fato. Isso significa que anterior à presença material, e/ou espiritual, do objeto do devaneio poético, o eu-lírico encontra-se desértico, vazio, frio, lagrimoso, sozinho; e, logo após a entrada desse ser misterioso na narrativa poética, o eu-lírico torna-se florido, preenchido, agasalhado, acarinhado, reconfortado, portando frutífero.
Todavia, as antíteses indicam que não há, no poema, a superação de uma condição a priori para outra a posteriori. O que se configura é a mudança temporal no estado emotivo do eu-artístico que, efemeramente, provoca uma sensação de extravasamento, e, portanto, de reconforto; conforme se pode observar nos versos finais do texto: “Desejo incontido” / “Descompassos cardíacos” / “Reticências...”.
Nos versos percebe-se clara a satisfação do eu-sentimental que, após a presença do objeto de seu anseio e busca, torna-se um deserto verdejante, um lugar temporal ocupado, um frio caloroso...; e que, por isso, - mesmo configurando ainda um espaço arenoso, gélido, vago... - permite-se à expansão do desejo, à desarmonia dos compassos e à perdição nas entrelinhas, isto é, à fusão do “eu-outro” que se realiza nas reticências do texto.
É, portanto, o fenômeno da paixão que o eu-emotivo registra em formas métricas simples, rítmicas e, simultaneamente, intensas e contemplativas. Explorando sensações, anseios, desejos, interditos e deleitos que se confundem, durante o instante criativo, na busca pela plenitude da relação “eu-tu”; considerando que: “amor é um fogo que arde sem se ver”...




Notas:


[1] Tânia Nascimento possui formação acadêmica em Português/Literatura (Letras), é professora efetiva no quadro funcional da Secretaria Municipal de Educação na cidade do Rio de Janeiro-RJ, onde atualmente exerce a função de coordenadora pedagógica.
[3] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofiado não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, pp. 181-354, 1978.
[4] MOISÉS, Massaud. A análise literária. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1984.
[5] CAMÕES, Luiz Vaz. In: Literatura comentada. São Paulo: Abril, 1980, p. 31.







2 comentários:

  1. Querida Hercília.

    O trabalho que você desenvolveu, tomando como apoio o meu (tão bobinho - é como ainda o vejo) poema me deixou feliz por demais.

    Sinceramente... Me faltam palavras e, essa expressão - tão batida e usual - diz absolutamente tudo que sinto diante da grandiosidade de teu talento; para a prosa, poesia, música, eduacação e análise literária entre outras capacidades que por certo você tem.

    Você é uma mulher inteligentíssima, muitíssimo competente e generosíssima.

    Eu não me sinto merecedora de ter um poema meu, em tuas mãos, para material de trabalho. Não mesmo.

    A análise que você fez é um excelente material de pesquisa para quem gosta de literatura e/ou para quem gosta de aprender.

    Parabéns! E, mais uma vez, muito obrigada por tamanha generosidade.

    Com carinho e admiração,
    Taninha

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  2. Oi, HF!

    Excelente análise textual! Um ótimo exercício de leitura, sem dúvida!!!

    Aproveitando... quero dizer à Taninha que seu poema é belo pela simplicidade e pelo sentimento que emana das linhas, entrelinhas e reticências!...

    E a Hercília Fernandes teve sensibilidade para reconhecer esses traços e explorá-los em seu artigo.

    Ambas estão de parabéns!!!

    Beijos,
    Maria Clara.

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