Camilo quis sinceramente fugir, mas não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo. Fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. (Machado de Assis, in: A cartomante, 2007, p. 351-358).
Dentre as temáticas que compõem a literatura brasileira destaca-se a trama do “triângulo amoroso”.
Um dos escritores brasileiros que mais desenvolveu o tema foi Machado de Assis (1839-1908), que analisara os conflitos humanos, as máscaras sociais e os embates entre valores e convenções da sociedade brasileira no século XIX aos apelos do amor sensual.
Essa realidade pode ser observada no romance Dom Casmurro, onde Machado desenvolve todo um jogo ficcional-narrativo entre os valores cristãos burgueses e os conflitos provenientes do amor romântico.
Através das ânsias e ações das personagens Bentinho, Capitu e Escobar, o escritor coloca em xeque as convenções sociais comuns à sua época; que impunham arranjos de casamento entre famílias por interesses comuns e não por laços de afetividade.
No conto A cartomante, o escritor também desenvolve a trama do triângulo amoroso. Por meio das personagens Vilela, Rita e Camilo, Machado apresenta perfis psicológicos densos e situações intensas acerca das relações entre gênero e, especialmente, da imagem feminina.
Na obra machadiana é comum a aparição de personagens mulheres dissimuladas, interesseiras, traiçoeiras, oblíquas... o que demonstra a visão patriarcal-cristã da época que confere ao feminino os atributos de Eva e/ou serpente...
Para Luft (1991), o escritor transfere às personagens femininas os seus próprios problemas existenciais: ambição, desvencilhamento com o passado, peso da hierarquia social... Esses conflitos se podem observar nas personagens Guiomar e Helena, ambas da primeira fase do escritor: a romântica.
Por outro lado, segundo destaca Bergamini (2008, p. 2), “o escritor via a mulher como um elemento social que maneja e comanda, sendo astuciosa e cerebral, divergente, nesse ponto, da mulher romântica”.
Essa última argumentação condiz à segunda fase do autor: a do realismo. Nessa fase destaca-se o autor analista, observador, frio no raciocínio, na exposição de fatos que “retrata a mente humana”, analisando-a com ironia e humor (LUFT, 1991, p. 578).
No tocante à temática do triângulo amoroso, Machado
Para Bergamini (2008), devido Machado desenvolver a trama em uma temporalidade psicológica acaba por provocar a ambiguidade, levando o leitor a dúvidas sobre os fatos; tendo em vista que: “O conto mostra como o desejo pode abrir brechas em situações de opressão. Nada acontece objetivamente entre os dois” [entre Capitu e Escobar]. Todavia, “onde nada aconteceu, tudo pode estar acontecendo subjetivamente” (BERGAMINI, 2008, p. 11).
Já
Também na poesia, a temática do triângulo amoroso perpassa as linhas dos poetas, sendo uma problemática bastante explorada. Tal realidade pode ser observada na produção poética atual através dos dizeres poéticos femininos na Blogosfera. Leiam-se dois textos, cujas vozes líricas expressam as ânsias em torno da problemática in foco:
Amavam-se por adição
Na cama subtraíam as diferenças
Dividiam os prazeres
Multiplicavam os gozos
A relação não durou...
Ele se envolveu com a Álgebra
E mudou seu logaritmo
Ela nunca o perdoou por isso
Seu coração ficou partido em frações
Potencializou a raiva por muito tempo
E até hoje não conseguiu extrair a raiz do problema
Wania, in: Encantaventos
meu coração é 4X4
simples puxadinho em morro
................................................condenado
...........................mesmo quando desmorona
.............................sempre cabe mais um
em vão ensolarado
.............................................amor feijão com arroz...
Hercília Fernandes, in: HF diante do espelho
Conforme se pôde ler no poema ordi(bi)nário, da poetisa Wania de Porto Alegre-RS, a relação entre amantes é descrita como harmoniosa até entrada de uma terceira pessoa, ou melhor de uma "Álgebra", no poema-equação; surgindo conflitos entre pares que nem sempre podem encontrar “a raiz do problema”...
Em o texto amor 4X4, evidencia-se também a expressão sutil de uma situação triangular, onde a escrita poética acena para os conflitos e dilemas humanos em razão das intempéries amorosas.
Em ambas as situações, o que se percebe é que os sentimentos, sensações e analogias realizadas pelas vozes líricas apontam para-além das aparências e revelam, “por cima de ervas e pedregulhos”, a própria obliquidade inerente à condição humana.
Notas
[1] Texto postado, primeiramente, no blog de poesia feminina “Maria Clara: simplesmente poesia”. Nesta postagem, o artigo sofreu algumas alterações.
[2] Arte extraída do Google Imagens.
Referências
BERGAMINI, Denise Lopes. As mulheres no conto de Machado de Assis. In: Darandina Revista Eletrônica. Programa de Pós-Graduação de Letras – UFJF, v. 1, n. 2, 2008, p. 1-17.
LUFT, Celso Pedro. Novo Manual de Português: Redação, Gramática, Literatura, Ortografia Oficial, Textos e Testes. São Paulo: Editora Globo, 1991.
MACHADO, Assis de. A Cartomante. In: ______. 50 contos. Machado de Assis. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
Perfeito, Hercília!
ResponderExcluirA obra machadiana, e tantas outras trabalham sobre a trama do triângulo amoroso. Nada mais fácil e difícil ao mesmo tempo. Verso e reverso.
Brilhantemente aqui exlanado por você e com os belíssimos versos de Úrsula e Wania. Duas poetisas que admiro.
Parabéns!
Beijos
Mirse
P.S (entre-exames)
Mirse,
ResponderExcluirme alegra saber que gostou do artigo.
grata por sua visita e carinho expresso.
Um forte abraço,
H.F.