domingo, 12 de julho de 2009

CECÍLIA MEIRELES & JOSUÉ DE CASTRO: Poesia, Medicina e a Utopia da Educação Integral em “A Festa das Letras”


Hercília Maria Fernandes

Tânia Maria Fernandes Oliveira

Antônio Basílio N. T. de Menezes[2]


RESUMO: O artigo discute os valores imbuídos na obra infantil A festa das Letras (1937), obra composta por dois célebres intelectuais brasileiros: Cecília Meireles e Josué de Castro. O estudo situa a obra infantil como “intervenção pedagógica” intencionalmente dirigida pelos intelectuais à criança, aos educadores e à família brasileira, de modo a promover ressonâncias junto ao projeto liberal de modernidade da realidade nacional. Para realização de tal feito, o trabalho estabelece aproximações com o discurso então hegemônico no campo intelectual brasileiro: o da “ciência da higiene”.

PALAVRAS-CHAVE: Cecília Meireles. Josué de Castro. A festa das letras. Ação pedagógica. Educação integral.



Introduzindo...


No entre-séculos constituía uma prática comum na criação literária nacional a adoção de parcerias entre profissionais de várias áreas para compor os livros de leitura que seriam adotados pelas escolas. Dentre as parcerias mais ilustres podem-se destacar a do escritor Olavo Bilac com o educador Manuel Bomfim e, também, de Bilac com Coelho Neto que compuseram livros, no gênero infantil, de grande repercussão no universo institucional, integrando a linha utilitarista, nacionalista e patriótico-cívica (COELHO, 1991; SANTOS, OLIVA, 2004).

Os primeiros anos de República configuram-se difíceis, o Brasil enfrenta sérios problemas de ordem política, econômica e sócio-cultural: fome, miséria, doenças, epidemias, alcoolismo, desemprego, abortos e práticas de infanticídio assolavam o país no entre-séculos. Por isso, suscita a implementação de ações político-sociais oriundas de campos e agentes sociais distintos, sobretudo em torno da educação escolar para as classes populares; já que a sociedade brasileira, historicamente, enfrentava os fenômenos do analfabetismo, da desnutrição e mortalidade infantil (GONDRA, 2002, 2004).

Nesse quadro de problemáticas sociais, surge, na década de 1930, a parceria entre o médico higienista Josué de Castro[3] e a poetisa e educadora Cecília Meireles[4] para compor, a convite da Editora Globo, uma campanha de alimentação lançada na época, por meio da elaboração de um livro infantil a ser difundido no campo escolar. No intuito de contribuir para minimizar o quadro de ignorância, analfabetismo e suscitar comportamentos e hábitos saudáveis de alimentação e higiene, os escritores especialistas em medicina e educação se propuseram à elaboração da obra infantil intitulada A festa das letras.


A Festa das Letras e os Ideais de Formação de um Novo Homem


O início do século XX configura palco de um cenário agitado de modificações políticas, econômicas, culturais e ideológicas que convida os intelectuais brasileiros para a “ação” (HERSCHMANN, 1996).

Josué de Castro e Cecília Meireles foram intelectuais que se propuseram à ação no espaço político e sócio-educacional brasileiro. Em Josué, destaca-se a missão social do médico no combate a situação de fome, desnutrição e mortalidade (ANDRADE, 1997). Em Cecília Meireles, a causa da educação movida pelo sentimento de justiça social para com a criança brasileira, sobretudo à infância de origem economicamente desfavorecida, que se encontrava ainda excluída do processo de instrução (NEVES; LÔBO; MIGNOT, 2001).

A convite da Editora Globo de Porto Alegre, os dois intelectuais se unem para elaboração do primeiro volume da Série Alimentação para ser difundido no universo educacional brasileiro, almejando promover ressonâncias no combate às mazelas sociais provocadas pela má alimentação e higiene.

O livro, composto por vinte e três poemas, segue o formato de um abecedário, onde cada letra do alfabeto corresponde a um texto específico que apresenta uma série de alimentos, preceitos de higiene e vida saudável. A obra fora lançada pela primeira vez em 1937, pela Editora Globo; e, em 1996, fora republicada pela Nova Fronteira que manteve a originalidade dos textos e as ilustrações feitas pelo artista plástico João Fahrion. Em nota atualizada do editor apresentam-se a obra e os seus autores ao leitor infantil (apud MEIRELES; CASTRO, 1996):


A festa das letras, lançado em 1937, foi o primeiro volume da Série Alimentação, que a Livraria Globo – antiga Globo de Porto Alegre, de Barcellos e Bertarso & Cia. – organizou a título de colaboração para uma campanha nacional da época. Os livros que compunham a série, dedicados ao assunto e adequados às várias faixas escolares, procurando aliar o rigor científico à graça e à simplicidade capazes de atrair a atenção do público infantil. Para isso forma convidados o dr. Josué de Castro – médico e uma das maiores autoridades brasileiras em alimentação – e Cecília Meireles – poeta, cronista e educadora.


Em A Festa das Letras (1937) se percebe a existência de um projeto educativo atrelado às idéias de sanitarizar, civilizar e modernizar a realidade nacional através da formação de hábitos saudáveis, dos benefícios da boa alimentação e digestão, do bom funcionamento do corpo humano e da higiene adequada. Na obra, as lições giram em torno de uma temática específica: a alimentação, atrelada aos preceitos de higiene e saúde.

A obra traz também um dado bastante chamativo: o uso de imagens, cores, formas, ludicidade. Há, conforme se observa no livro, a presença da intencionalidade pedagógica guiando o processo criador dos autores que buscam trabalhar os conteúdos de uma forma divertida, fazendo uso de várias linguagens para suavizar o feitio pragmático e fortemente funcional. Assim, os escritores se referem à obra: “A festa das letras procura ser um pretexto agradável para fazer chegar às crianças, revestidos de certo encantamento, esses primeiros preceitos de higiene alimentar, indispensáveis à sua vida” (MEIRELES; CASTRO, 1996, grifos dos autores).

Mediante esse “pretexto agradável”, o livro vai desenvolvendo através das letras do alfabeto uma verdadeira festa da alimentação e da saúde, como se pode ver no fragmento do poema de abertura (MEIRELES; CASTRO, 1996):


Ah! Ah! – pois o A, com a sua cartolinha bicuda,

parece o chefe do batalhão.

Pára na frente de todas as letras

e grita: A... A... A... A... Atenção!


Atenção! – que digo: Acorda, menino,

vamos ser Alegre, vamos ser Ativo,

eu te dou o Ar pra respiração,

eu te dou a Água, eu te dou as Árvores

e todas as belas

frutas Amarelas,

trago-te Apetite e Alimentação!


Venho dançando na frente do Almoço,

carregando Alface tão fina e tão fresca

que todos me pedem: “Quero uma porção!” [...]


Nos poemas, as letras do alfabeto aparecem maiúsculas e destacadas em negrito, chamando a atenção do leitor para a relação letras–palavras–significados. A forma literária adotada pelos autores consiste basicamente em uma cartilha, já que segue a ordem alfabética e apresenta um conjunto de alimentos que corresponde à letra em destaque. No texto acima, após a entrada da “Alface”, entram também em cena o “Agrião”, o “Arroz-doce”, a “Ameixa”, o “Aipo”, o “Abacate”, o “Araçá” e o “Abacaxi”. O que mostra a adequação da temática desenvolvida à problemática nacional também da alfabetização.

Segundo Coelho (1991) e Zilberman (2001), até o século XX abecedários constituíam modelos literários bastante empregados pelos escritores brasileiros. Na mesma época em que A festa das letras foi publicada, Erico Veríssimo lança, também pela Editora Globo, a obra Meu ABC. E, em 1939, publica Aventuras no mundo da higiene. Como se pode inferir tanto a preocupação com a alfabetização, como as questões relacionadas à higiene estavam em pauta nesse período.

A literatura infantil brasileira da década de 1920 aos anos de 1940 manteve o caráter utilitarista nas produções infantis do entre-séculos; e, na década de 1930, evidencia-se um certo antagonismo entre realismo e fantasia. Para Coelho (1991), tal antagonismo fora gerado em razão da difusão das novas conquistas da pedagogia, da psicologia, da sociologia, etc.; e, sobretudo, por meio das políticas e reformas educacionais realizadas nos estados brasileiros que impunham


[...] por um lado, a necessidade de se conhecer a Realidade de nosso país, de nosso governo, do caráter do brasileiro e de sua verdadeira natureza; por outro lado, o confronto entre o ensino leigo e ensino religioso. Tais divergências levam certos setores educacionais a se colocarem contra a Fantasia na Literatura Infantil e a exigirem, em seu lugar, a Verdade, o Realismo (COELHO, 1991, p. 242).


Desse modo, um dos aspectos em destaque de A festa das letras é a direção realista adotada pelos autores. Desde a linguagem à significação dos conteúdos, os autores desenvolvem as temáticas de uma forma precisa, objetiva, sem ofertar espaço para a imaginação do leitor. Conforme se pode observar no fragmento do poema referente à letra “D”:


Direito, Direito,

É o D que diz assim

Direito, Direito,

se gosta de mim.


Devagar com o Dente!

Não corra tanto, não!

Se mastiga mal

faz má Digestão!...

[...]


Dente sempre limpo,

Dente sempre são,

Dente forte, Dente duro,

Para boa mastigação! [...].


Para Marly Amarilha (1997), apesar de Cecília Meireles e Josué de Castro fazerem uso da rima e do refrão objetivando tornar o texto lúdico e de fácil memorização, isso não garante ao texto o status de produção literária. Considerando que enquanto é possível “brincar” com os “aspectos formais” da escrita, o mesmo não se realiza com o seu “conteúdo”, posto que: “A significação do texto está limitada pela mensagem de ‘saúde’ que deve ser veiculada”. Ou seja, Cecília e Josué organizam o poema de maneira a “[...] transmitir uma informação precisa. Embora o resultado seja agradável, esse texto não é literatura” (AMARILHA, 2001, p. 47, grifo nosso).

Na obra de Cecília Meireles e Josué de Castro - mesmo os autores fazendo uso de recursos estilísticos que tornam a escrita prazerosa: rimas, imagens, diminutivos, aliterações e onomatopéias - destacam-se claramente as intenções dos autores de alfabetizar, higienizar, sanitarizar, formar hábitos alimentares saudáveis e inserir o leitor nos princípios da civilidade. Ou seja, a ordem seguida pelos autores para construção do livro dar-se através da parceria medicina – literatura - educação.

A obra, conciliando poesia, ilustração, lições de alimentação e higiene, sinaliza para as “leis da civilidade” e “saúde do corpo”. Para as autoras Cunha e Bastos (2001), a obra de Cecília e Josué de Castro se integra à linguagem da modernidade, cujos intelectuais têm como metas, no momento histórico, a preservação da saúde do corpo e do espírito. Em suas palavras:


Conservar a saúde física e mental do corpo foi a tônica dos intelectuais desse período que, como Cecília Meireles, estavam comprometidos com a salvação nacional traduzida em um apostolado que pretendia orientar os hábitos de higiene para conservação da saúde e para formar o cidadão saudável, que poderá lutar em defesa da nação. Enfim, um cidadão civilizado, fruto da ‘raça nova’ e, por isso, consciente de seus deveres para com a família, a sociedade, a pátria, a humanidade (CUNHA; BASTOS, 2001, p. 206).


Desse modo, percebe-se que as noções de higiene, de alimentação adequada e do asseio pessoal em A festa das letras fazem parte de um projeto de modernidade para sociedade brasileira ligado à conservação da saúde e ao vigor do corpo para formar um brasileiro mais “são”. Nesse sentido, o objetivo central dos autores era através da obra produzir novos hábitos alimentares e práticas educativas junto as crianças brasileiras que ainda se encontravam expostas a altas taxas de desnutrição e mortalidade infantil.

Segundo Boarini (2003), Gondra (2002, 2004) e Herschmann (1996), o discurso médico perdurou durante anos sobre a educação brasileira. Dos fins do Império a República, a fórmula para promover a regeneração da realidade nacional incluía a saúde e a educação do povo para formar uma nação mais sã, educada e, portanto, civilizada.

As preocupações com a criança e a infância brasileira, nesse período, se deviam as influências das teorias evolucionistas do desenvolvimento humano, aliadas à moral positivista e cristã católica. Nesse sentido, Gondra (2002) alude que se destaca, no caso brasileiro, um projeto de transformação do social articulado à escola que efetua múltiplas interferências no âmbito da vida privada; cujas intervenções giravam em torno de uma “[...] racionalidade que também deveria se ocupar da infância, colocando-a no âmbito do extenso projeto de modelação higiênica dos sujeitos e do social” (GONDRA, 2002, p. 290).

Assim, medicina e educação passam a regular o cotidiano, cujos interlocutores, nutridos com as teorias de uma “ciência da infância”, prescrevem “[...] procedimentos, cujo início se daria no controle das condutas anteriores dos pais, estendendo-se até a ‘idade dos colégios’, demarcando fronteiras e instituindo empréstimos entre o espaço da casa e o da escola (GONDRA, 2002, p. 290).


Concluindo...


O discurso médico-higienista, no Brasil, compreendia as problemáticas da infância, da educação e saúde do povo numa posição invertida da realidade histórica (BOARINI, 2003). Um exemplo dessa realidade se expressa na obra A festa das letras (1937).

Apesar de Cecília e Josué, ao longo de suas vidas, terem demonstrado intensas preocupações com as problemáticas sociais brasileiras, nos textos de A festa das letras os intelectuais parecem simplesmente ignorar as reais condições de vida da população, prescrevendo uma série de alimentos que estão longe do conhecimento da sociedade e/ou da possibilidade concreta de aquisição; muito embora a obra tenha sido escrita com o intuito de contribuir no pleno equilíbrio da mente e do corpo da criança. Essa realidade pode ser observada nos versos do poema: “Sou o N – de Nata / quem me quer provar? / N de Nabo e Nabica – quem gosta de mim? Sou o N - de Noz, / quem me quer quebrar?” (MEIRELES; JOSUÉ, 1996).

Assim, é uma constância na obra a indicação de alimentos que estão longe da probabilidade de consumo da população, já que se destacam alimentos de origem, inclusive, estrangeira; o que denuncia a visão utópica dos intelectuais de que o problema da má nutrição e mortalidade infantil brasileira poderia ser resolvido a partir instrução da criança e, conseqüentemente, com a transformação de suas famílias.

A inversão da realidade histórica se evidencia na ação pedagógica de Cecília e Josué quando se observa, implicitamente, a justificativa de que a falta de saúde da criança - decorrente da má alimentação e dos maus hábitos - tem origem na ignorância das suas famílias sobre o uso adequado dos alimentos e de seus nutrientes. Igualmente, quando se associa à falta de higiene à ausência de educação, quando a realidade de moradia e saneamento básico da população carente impele a qualquer hábito considerado são, civilizado, europeu.

A festa das letras expressa, então, as contradições existentes nos discursos dos intelectuais brasileiros nos anos iniciais do século XX, que, amparados numa visão cientificista e elitista, contribuíram para promover a dissimulação do real e remeter as problemáticas sociais brasileiras ao plano do ideal. Ou, melhor, às causas "[...] simples como o N das ciências naturais"... (MEIRELES; JOSUÉ, 1996).


Referências


AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. Petrópolis-RJ: Vozes, Natal: EDUFRN, 2001.


ANDRADE, Manuel Correia de. Josué de Castro: o homem, o cientista e seu tempo. In: ESTUDOS Avançados. São Paulo, v. 11, n. 29, jan. – abri., 1997, p. 169-194.


BOARINI, Maria Lúcia. Higiene e raça como projetos: higienismo e eugenismo no Brasil. Maringá: EDUEM, 2003.


CARVALHO, Maria Chagas de. Pedagogia da escola nova, produção infantil e controle doutrinário da escola. In: KUHLMANN Jr.; FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002, p. 373-408.


COELHO, Nelly Novaes. (Org.). Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras. São Paulo: Escrituras, 2002.


______. Panorama histórico da literatura infanto/juvenil. São Paulo: Ática, 1991.


CUNHA, Maria Tereza Santos; BASTOS, Maria Helena Camara. Letras em festas. In: NEVES, Margarida de Souza; LÔBO, Yolanda Lima; MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio. Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: Puc-Rio; Loyola, 2001.


FERNANDES, Hercília M.. A lírica pedagógica de Cecília Meireles em “Ou isto ou aquilo” (1964): instrução e divertimento. Caicó-RN: UFRN, 2006, 69 p. (Monografia) – Curso de Especialização em Educação Infantil, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2006.


GONDRA, José. Arte de civilizar, Higiene e Educação na Corte Imperial. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004.


______. “Modificar com brandura e prevenir com cautela”. Racionalidade médica e higienização da infância. In: KUHLMANN Jr.; FREITAS, Marcos Cezar (Org.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002, p. 289-318.


HERSCHMANN, Micael. Entre a insalubridade e a ignorância. A construção do campo médico e do ideário moderno. In: ______. Missionários do Progresso: Médicos, Engenheiros e Educadores no Rio de Janeiro: 1870 –1937. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996.


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______. Crônicas de educação: obra em prosa. Apresentação e planejamento editorial de Leodegário A. De Azevedo Filho. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/Departamento Nacional do Livro; Nova Fronteira, 2001b, v. 1, 2, 3, 4 e 5.


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______. Olhinhos de gato. 2. ed. São Paulo: Ed. Moderna, 1980.


______. Problemas da literatura infantil. 3. ed. São Paulo: Summus, 1984.


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______. Rute e Alberto resolveram ser turistas. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1938.


MEIRELES, Cecília; CASTRO, Josué de. A festa das letras. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1996.


NEVES, Margarida de Souza; LÔBO, Yolanda Lima; MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio. Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: Puc-Rio; Loyola, 2001.


OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de. Releituras de Cecília Meireles: cronologia biobibliográfica da poetisa. In: ARQUIVO Cecília Meireles. Disponível em: http://www.assis.unesp.br/arquivocecilia/index3.html>. Acesso em: 12 fev. 2007.


SANTOS, Claudefranklin Monteiro; OLIVA, Terezinha Alves de. As multifaces de “Através do Brasil”. In: REVISTA Brasileira de História. São Paulo, v. 24, n. 48, 2004, p. 101-121.


ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global Editora, 2003.


______. Em busca da criança leitora. In: NEVES, Margarida de Souza; LÔBO, Yolanda Lima; MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio. Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: Puc-Rio; Loyola, 2001.



Notas


[1] O artigo consiste fruto de pesquisa desenvolvida durante o Mestrado em Educação e se apresenta, aqui, como síntese de trabalho apresentado no 5◦ SEL - Seminário Nacional de Educação e Leitura, promovido pelo PPGEd / UFRN. Referência: FERNANDES, Hercília M.; OLIVEIRA, Tânia M. Fernandes; MENEZES, A. B. N. T. de . Cecília Meireles & Josué de Castro: poesia, medicina e a utopia da educação integral em A festa das letras (1937). In: 5◦ SEL - Seminário de Educação e Leitura, Natal-RN: UFRN, 2008.


[2] Autores: Hercília Maria Fernandes, Professora Mestra em Educação (UFRN); Tânia Maria Fernandes Oliveira, Professora Mestra em Educação (UFRN); Antônio Basílio Novaes Thomaz de Menezes, Professor Doutor, vinculado ao Departamento de Filosofia e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN.


[3] Josué Apolônio de Castro, filho de uma família de classe média de origem sertaneja, nasceu no Recife em 5 de novembro de 1908. Recebeu as primeiras letras com a sua mãe, professora primária, e sua formação inicial se deu no Instituto Carneiro Leão e no ginásio Pernambuco. O curso superior se realizou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e após conclusão em 1929, o médico retorna ao Recife e dedica-se a especialidade de fisiologia. Josué foi professor na Faculdade de Medicina do Recife, onde defende a tese O problema fisiológico na alimentação, no ano de 1932. Ao longo de sua vida, Josué de Castro deteve especial atenção à nutrição e às mazelas sociais decorrentes da má alimentação, moradia e higiene, publicando vários livros sobre a temática, dentre os quais se destacam: O problema da alimentação no Brasil (1933); Salário mínimo (1935); Alimentação e raça (1936); Documentário sobre o Nordeste e Alimentação à luz da geografia humana; Science et technique (1938); Fisiologia dos tabus (1939); e o seu principal livro que alcança grande repercussão no cenário científico Geografia da fome. A fome no Brasil (1946) (ANDRADE, 1997).


[4] Cecília Benevides de Carvalho Meireles, filha de funcionário do Banco do Brasil e de professora primária, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 1901, e faleceu na mesma cidade em 09 de novembro de 1964. Sua formação inicial se deu no antigo Instituto de Educação do Distrito Federal, onde conclui os estudos na Escola Normal Estácio de Sá em 1917, passando a ensinar no curso primário, em um antigo sobrado localizado na Avenida Rio Branco (OLIVEIRA, 2007). Cecília teve uma participação intensa na literatura, imprensa e educação brasileiras. Em 1919, estréia na literatura brasileira com a obra Espectros, e, em 1924, publica a sua primeira obra no gênero infantil Criança meu amor. Em 1929, concorre com a tese O espírito Vitorioso à cátedra de Literatura da Escola Normal. De 1930 a 1933, ocupa a Página de Educação no Jornal Diário de Notícias onde desenvolve uma ação reflexiva dos problemas educacionais, políticos e sociais brasileiros, defendendo na imprensa carioca os ideais da Escola Nova. Em 1935 é nomeada professora da Universidade Federal do Distrito Federal e trabalha no Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), como responsável pela revista Travel in Brazil. Em 1938, inscreve o livro Viagem no Concurso promovido pela Academia Brasileira de Letras e recebe o primeiro lugar no concurso. Na década de 1940, Cecília ministra um curso de Literatura e Cultura Brasileira na Universidade do Texas (COELHO, 2002; OLIVEIRA, 2007). De 1940 a 1950, participa de conferências e congressos sobre folclore, tornando-se integrante do Conselho Nacional de Folclore (CNFL), desde a sua formação em 1947. E, no ano de 1949, profere três conferências aos educadores de Belo Horizonte, cujos seminários derivam o livro Problemas da literatura infantil (1951) (NEVES; LÔBO; MIGNOT, 2001).




domingo, 14 de junho de 2009

Outras vozes: contribuições da Blogosfera (2)


O professor e pesquisador Jayme Bueno, com a sensibilidade e sabedoria que lhes são próprias, enviou-me, há algum tempo atrás, um belíssimo artigo sobre “a imagem do espelho na literatura”. Em correspondência de e-mail, datada de 20 abril de 2009, o ilustre estudioso alude:


Prezada Hercília Fernandes,

Motivado pelo título de seu blog HF DIANTE DO ESPELHO, resolvi buscar informações e alguns poetas mais conhecidos que trabalharam o tema espelho em seus poemas.


O artigo comporta algumas definições sobre o fenômeno do espelho na literatura, particularmente na poesia, apresentando análises conceituais de teóricos como Bachelard, Humberto Eco e Winnicott. Além disso, o prof. Jayme desenvolve a temática a partir de obras e fragmentos literários de grandes nomes da literatura universal e contemporânea, destacando o tema em Shakespeare, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Mario Quintana, dentre outros.

E, encerra o artigo com uma belíssima obra em prosa de Érico Veríssimo, onde o autor proclama que: “O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear” (VERÍSSIMO, in: Solo de Clarineta).

Passemos, então, aos espelhos poéticos contemplados pelo excelentíssimo prof. Jayme Bueno.



DIANTE DO ESPELHO


Por Jayme Bueno


Estar à frente de um espelho e mirar-se nele faz parte do inconsciente coletivo. Essa fixação sobre a imagem no espelho provém, como quase tudo na literatura, das lendas gregas. Neste caso, ela deriva em especial da lenda de Narciso poetizada pelo poeta latino Ovídio nas Metamorfoses. Narciso, enlevado por sua própria beleza, ia olhar-se todo dia nas águas de um lago. Era o desejo de conhecer-se que o atraía e o deleitava.

Todos nós mortais queremos conhecer-nos a nós mesmo. Somos todos personalistas, todos encantados conosco mesmos. De certa forma, seguimos o preceito de Sócrates; conhece-te a ti mesmo. Com certeza, porém, ele não acrescentou: enleva-te com a sua própria imagem. A Sócrates, filósofo como era, preocupava o conhecimento interior a essência do ser, e não a beleza da imagem, que é algo exterior e passageira.

Veio, então, essa verdadeira fixação à imagem que aparece no espelho, que, em tempo, já não lendários, substituiu as águas do lago. Para Bachelard, segundo Cássia Helena Barbosa José e Adilson José Ruiz, em Diálogo com Narciso: uma interpretação plástica de Bachelard: O espelho (...) é demasiadamente civilizado e geométrico. Quando Narciso se depara com sua imagem refletida em um lago, ele encontra na água um campo aberto para uma experiência íntima de beleza.

Para Clarice Lispector, em Água Viva, p. 79: ... Espelho é luz. Um pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo. (...) É coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto.... O espelho, portanto inspira sonho e devaneio. Ele representa a profundeza que se mostra a um poeta.

É necessário que, como Umberto Eco, Sobre os espelhos e outros ensaios, tenhamos a necessária consciência de que não somos nós que estamos dentro do espelho, mas a nossa imagem, que lá inclusive aparece distorcida: o relógio do pulso esquerdo aparece no direito: O espelho reflecte a direita exactamente onde está a direita e a esquerda onde está a esquerda. É o observador (ingénuo, mesmo quando faz de físico) que por identificação imagina que é o homem dentro do espelho e, vendo-se, se dá conta de que traz, por exemplo, o relógio no pulso direito. Mas o facto é que só o traria se ele, o observador, fosse aquele que está dentro do espelho (Je est un autre).

O psicólogo Winnicott, da linha lacaniana, foi outro a quem o tema interessou, em Mirror-role of mother and family in child development (O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil), no capítulo IX - O Brincar e a Realidade, p. 131 -, escreveu: O que faz o bebê quando ele ou ela olham a face da mãe? Eu sugiro que, geralmente, o que o bebê vê é a ele mesmo. Winnicott vê, portanto, as nossas mães como as precursoras de nossos espelhos.

Para Tomás Baêna, que se baseia em Bachelard e em Winnicott: O espelho (do latim speculum) exerceu desde sempre um grande fascínio sobre o espírito humano, pois gera um espaço de ambiguidade: a imagem que reflecte é simultaneamente idêntica (ainda que invertida) e ilusória. O espelho assume, assim, sentidos radicalmente opostos: representa a verdade (símbolo mariano) e a aparência (símbolo demoníaco).

Segundo ainda Tomás Baêna, a crítica de Platão (427-347 a. C.) sobre o simulacro assenta precisamente nesta relação entre o objecto real e o seu enganador reflexo. Inscrito no campo animado da experiência e da actividade psíquica, o espelho veicula o sentido de verdade equívoca, sendo considerado o símbolo por excelência do Simbolismo (Michaud, 1949). Nesta medida, assume uma função estética de destaque em todos os campos artísticos.

Após este breve, embora longo excurso, vamos ver como diferentes poetas e prosadores reproduziram em suas obras a imagem do espelho:




RETRATO

Cecília Meireles


Eu não tinha este rosto de hoje,

Assim calmo, assim triste, assim magro,

Nem estes olhos tão vazios,

Nem o lábio amargo.


Eu não tinha estas mãos sem força,

Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

Que nem se mostra.


Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida

A minha face?



Fragmento de PROCURA DA POESIA

Carlos Drummond de Andrade


Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.



VERSOS DE NATAL

Manuel Bandeira


Espelho, amigo verdadeiro,

Tu refletes as minhas rugas,

Os meus cabelos brancos,

Os meus olhos míopes e cansados.

Espelho, amigo verdadeiro,

Mestre do realismo exato e minucioso,

Obrigado, obrigado!


Mas se fosses mágico,

Penetrarias até o fundo desse homem triste,

Descobririas o menino que sustenta esse homem,

O menino que não quer morrer,

Que não morrerá senão comigo,

O menino que todos os anos na véspera do Natal

Pensa ainda em pôr os seus sapatinhos atrás da porta.



O ESPELHO

Mario Quintana


E como eu passasse por diante do espelho

não vi meu quarto com as suas estantes
nem este meu rosto

onde escorre o tempo.


Vi primeiro uns retratos na parede:

janelas onde olham avós hirsutos

e as vovozinhas de saia-balão

Como pára-quedistas às avessas que subissem do fundo do tempo.


O relógio marcava a hora

mas não dizia o dia. O Tempo,

desconcertado,

estava parado.


Sim, estava parado

Em cima do telhado...

Como um catavento que perdeu as asas!



RETRATO ANTIGO - do livro Viagem no Espelho

Helena Kolody


Quem é essa

quem me olha

de tão longe,

com olhos que foram meus?



RETRATO

Lila Ripoll


Chego junto do espelho, olho meu rosto.

Retrato de uma moça sem beleza.

Dois grandes olhos tristes de agosto,

olhando para tudo com tristeza.


Pequeno rosto oval. Lábios fechados

Pra não revelar o meu segredo...

Os cabelos mostrando, sem cuidados,

Uns fios brancos que chegaram cedo.[...]


Meu retrato. Eis aí: Bem igualzinho.

O espelho é meu amigo. Nunca mente.

No meu quarto, ele é o móvel mais velhinho.

E sabe desde quando estou descrente!...



O ESPELHO

Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa


O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.

Pensar é essencialmente errar.

Errar é essencialmente estar cego e surdo.



Uma estrofe do poema FOLHAS DE ROSA

Florbela Espanca


O espelho de prata cinzelada,

A doce oferta que eu amava tanto,

Que reflectia outrora tantos risos,

E agora reflecte apenas pranto



O ESPELHO DO GUARDA-ROUPA – Parte III

Ferreira Gullar


Carregar um espelho

é mais desconforto que vantagem:

a gente se fere nele

e ele

não nos devolve mais do que a paisagem

Não nos devolve o que ele não reteve:

o vento nas copas

o ladrar dos cães

a conversa na sala

barulhos

sem os quais

não haveria tardes nem manhãs



POEMA 22

João Manuel Simões


Estilhacei o espelho

a pontapés

pensando destruir

a própria imagem.

(E era eu que habitava

além do espelho.)

Por isso em cada caco

habita agora

um pedaço de mim,

esquartejado.



AL ESPEJO

Jorge Luis Borges



¿Por qué persistes, incesante espejo?

¿Por qué duplicas, misterioso hermano,

el movimiento de mi mano?

¿Por qué en la sombra el súbito reflejo?


Eres el otro yo de que habla el griego

y acechas desde siempre. En la tersura

del agua incierta o del cristal que dura

me buscas y es inútil estar ciego.


El hecho de no verte y de saberte

te agrega horror, cosa de magia que osas

multiplicar la cifra de las cosas


que somos y que abarcan nuestra suerte.

Cuando esté muerto, copiarás a otro

y luego a otro, a otro, a otro, a otro…



ESPELHO DE UM MOMENTO

Paul Éluard, postado por Carlos Machado


Ele dissipa a claridade

Mostra aos homens as imagens sutis da aparência

Arrebata aos homens a possibilidade de se distraírem.

É duro quanto a pedra,

A pedra informe,

A pedra do movimento e da rua,

E seu brilho é tal que todas as armaduras, todas as

máscaras se deformam.

O que a mão tomou desdenha mesmo de tomar a forma da mão.

O que foi compreendido não existe mais,

A ave se confundiu com o vento,

O céu com sua verdade

O homem com sua realidade.



SONETO INGLÊS

Shakespeare, trad. Ivo Barroso


O espelho não me prova que envelheço

Enquanto andares par com a mocidade;

Mas se de rugas vir teu rosto impresso,

Já sei que a Morte a minha vida invade.


Pois toda essa beleza que te veste

Vem de meu coração, que é teu espelho;

O meu vive em teu peito, e o teu me deste:

Por isso como posso ser mais velho?


Portanto, amor, tenhas de ti cuidado

Que eu, não por mim, antes por ti, terei;

Levar teu coração, tão desvelado


Qual ama guarda o doce infante, eu hei.

E nem penses em volta, morto o meu,

Pois para sempre é que me deste o teu.



ESPELHO

Sylvia Plath, trad. postada por Beatriz Galvão


Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.

Tudo o que vejo engulo no mesmo momento

Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.

Não sou cruel, apenas verdadeiro —

O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.

O tempo todo medito do outro lado da parede.

Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele

Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.

Escuridão e faces nos separam mais e mais.


Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,

Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.

Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.

Vejo suas costas, e a reflito fielmente.

Me retribui com lágrimas e acenos.

Sou importante para ela. Ela vai e vem.

A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.

Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha

Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.



Para concluir, segue a voz de um grande prosador, Érico Veríssimo: Solo de Clarineta - Livro de memórias – Texto prefácio:



O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado - e às vezes, inexplicavelmente, do futuro - enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz ou pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa freqüência entramos em conflito. Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável. "Os cabelos te fogem, homem" - murmuro-lhe às vezes - "Tuas carnes se tornas flácidas. Vejo a escrita do tempo no pergaminho do teu rosto". - "E como imaginas que estás?" - replica o meu reflexo. Acabamos consolando-nos mutuamente com a idéia de que conservamos a mocidade de espírito. Mas até onde isso é verdade? Encolhemos os ombros e passamos a outras considerações e devaneios, enquanto o barbeador elétrico zumbe, e o incansável calígrafo invisível continua no seu sutil trabalho de amanuense da Morte.

No Homem do Espelho reconheço os olhos escuros e me­lancólicos de minha mãe. Essa cabeçorra, quase desproporcional ao resto do corpo, herdei-a de meu pai. Quanto à pele morena, talvez me tenha vindo de algum remoto antepassado índio ou mouro. As sobrancelhas negras e espessas - que passaram a vida no vão esforço de dar a essa cara um ar façanhudo, de­certo com o propósito de atenuar a mansuetude quase humilde dos olhos - foram suavizadas pela prata com que o tempo as retocou. (Prata ou cinza?)

Eu gostaria de simplificar o problema de meu "tempera­mento", apresentando-me como a manifestação duma dicoto­mia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe ­sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade - podem ser comparadas com os muros duma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insi­diosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, auto-in­dulgência/ inclinação para o ócio e para uma espécie de hedo­nismo irresponsável.

"Mas a coisa não é assim tão simples e nítida'.! - observa o Outro. - Eu sei, eu sei" - respondo em pensamentos ­"mas vamos adiante, companheiro. É pelos sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da ver­dade."

O Fantasma foca em mim os seus olhos secretamente cé­ticos e murmura: "Será que esse reino existe mesmo fora da mitologia?". Ambos encolhemos os ombros.



Breve biografia de Jayme Bueno:




Jayme Bueno é professor universitário e estudioso em literatura. É autor de vários livros sobre a literatura portuguesa, destacando-se: Távola Redonda: uma experiência lírica (1983) e Aspectos da Poética de António Gedeão (1979). Dispõe de vasta participação em congressos de literatura, cuja recente explanação se desenvolveu a partir do tema Padre António Vieira, Escritor e Diplomata, em agosto de 2008, no IX Congresso AIL (Associação Internacional de Lusitanistas), na Universidade da Madeira, em Funchal-Portugal. Contatos com o autor: Blog do Jayme Bueno.