quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Adélia Prado: liberdade à voz feminina



Uma das maiores representantes da literatura feminina brasileira é a poetisa e escritora mineira Adélia Prado (1935)[2]. Sua voz despojada, simples, direta, e, simultaneamente, lírica, compõe marcas que definem o estilo incontestável da autora dentro do panorama atual da poética feminina.

A expressão lírica da poetisa, no entanto, não se apresenta carregada por sentimentalismos piegas - ao contrário! –, expande-se por meio de uma poética voltada para o conhecimento do eu, o questionamento do real e os valores formadores da sociedade.

A condição da mulher, as exigências sociais em torno das atribuições femininas e a missão humano-artística abraçada pela poetisa são elementos desencadeados por seu lirismo objetivo e, ao mesmo tempo, profético. Como se podem observar nesses traços:


Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

(PRADO, Adélia in: Com licença poética).


O amor romântico e os ideais utópicos consolidados a partir da ótica e conquista masculina servem-lhe de tessitura para a sua composição questionadora, sobretudo no tocante aos valores herdados ainda da tradição patriarcalista, paternalista e sexista que conferem ao gênero masculino a liberdade e o domínio nas relações afetivas e sócio-humanas; e, às mulheres, a contenção e a abnegação aos sentimentos e aos apelos sensuais.

A autora, - com a suavidade que é lhe própria e contrariando as convenções impostas – indaga o amor romântico e apresenta certa preferência pelo amor real; àquele que, desraigado de ilusões, baseia-se no respeito mútuo, na liberdade de expressão e na igualdade entre os gêneros. Visto que, no dizer da poetisa, o amor feinho


não olha um pro outro.

Uma vez encontrado, é igual fé,

não teologa mais.

Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo

e filhos tem os quantos haja.

Tudo que não fala, faz.

Planta beijo de três cores ao redor da casa

e saudade roxa e branca,

da comum e da dobrada.

Amor feinho é bom porque não fica velho.

Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:

eu sou homem você é mulher.

Amor feinho não tem ilusão,

o que ele tem é esperança:

eu quero amor feinho.

(PRADO, Adélia in: Amor feinho).


Com o olhar voltado à realidade e às relações sócio-humanas, indagando os valores morais, as normas e convenções da sociedade, Adélia também expressa as inquietações filosóficas do seu eu-lírico e reflete o processo de mecanização dos sujeitos; que, sofrendo o peso das atribuições da vida moderna, desvinculam-se dos sentimentos espirituais, por ora essenciais à vida humana, conforme se observa em “seu” ensinamento poético:


Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo.

Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,

ela falou comigo:

"Coitado, até essa hora no serviço pesado".

Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.

Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo.

(PRADO, Adélia in: Ensinamento).


Por essas e outras razões, a poética adeliana exprime, além dos sentimentos profundos do eu-lírico, uma concepção de homem e sociedade que busca romper com os valores ideológicos então enraizados na realidade brasileira, dentre eles a crença nas “verdades” provenientes da ciência e, sobretudo, as exigências em torno do papel da mulher; isto é, de sua função social no emaranhado das relações humanas.

Função que a própria Adélia profetizou enquanto “bandeira”. Já que, desde logo, a autora apresentara consciência do fardo que a sua condição de mulher a faria carregar; porém, sem desmerecer a sua luta, então aceita enquanto “sina”.

Missão poética capaz de fundar “linhagens e reinos”, tendo em vista que a mulher, na expressão da poetisa, apresenta-se como um ser “desdobrável” e, Adélia, sem pretender ser autoritária, diz: “Eu sou”!



Aliteração

à Adélia Prado[3]


A poesia catártica,

galinha depois do golpe esperto

no pescoço pelado a jorrar -,

seleciona ritmos das internas obviedades,

depõe o azinhavre ao retirar

rebentos do arrisco.


Arisca, cisca a esquecer-se dos

que lhe penhoraram o olvido.

Pouco era o doce que acabado

derreteu-se no acalanto das burcas,

Nossas Senhoras túnicas, buscas desertificadas,

irmãs que apontam à submersão.


Avizinhada do alento,

certa saudade rompe o jugo da face inexistente,

the non-existing face a emergir do passado,

rosto púbere no tempo cristalizado,

efígie que não reconforta,

mas acende o artefato.


Rogério Santiago



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NOTAS


[1] Texto originalmente publicado, no Novidades & Velharias, em 28 fev. 2008. Para construção do artigo utilizou-se, na época, das fontes indicadas como “sugestão de leituras”. A bibliografia e os poemas da autora foram extraídos do site Jornal de Poesia e do Projeto Releituras.

[2] Adélia Luzia Prado Freitas, filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa, nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935.

[3] Além de dedicar o poema Aliteração à poeta Adélia Prado, Rogério Santos ofereceu o texto a André Adriano Brun, autor do artigo Uma estética do equilíbrio: o motivo feminino em Adélia Prado, e, à autora deste artigo, Hercília Fernandes.


9 comentários:

  1. Agradeço às autoras "Úrsula Avner" e "Dany Ziroldo" pelos votos de felicidades em 2010 no post anterior.

    Passados os festejos não havia mais a necessidade de manter o cartão de felicitações no ar.

    Mas deixo aqui registrado o meu carinho às amigas.

    Beijos,
    H.F.

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  2. descobri o seu blog nas imagens no balaio porreta do moacy. adoro a adélia prado. beijos, pedrita

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  3. Olá Pedrita.

    Feliz com sua presença no novidades & velharias.

    Também adoro Adélia, seu dizer simples e, por isso, abundante.

    Beijos,
    H.F.

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  4. Hercília, Adélia já era uma das minhas leituras preferidas.

    A explanação e os links só acrescentaram à sua maestria em nos trazer grandes escritores para apreciarmos e no meu caso continuar aprendendo.

    Parabéns, amiga!

    AMEI!

    Beijos

    Mirse

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  5. Mirse,

    também aprecio muito Adélia. Aliás, os mineiros, dentre eles as mulheres, são maravilhosos para com as palavras.

    Só para ilustrar temos a líria Porto, a Adriana Godoy, a Úrsula Avner... aquele que "divide mistérios", o poetíssimo Romério Rômulo. Enfim, as minas gerais aglutina pura poiésis!

    Grata pela presença, amiga.

    Beijos,
    H.F.

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  6. Hercília, "ver" Adélia tão bem esculpida foi um prazer. Como sempre, um trabalho tão belo quanto sólido.

    Beijos

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  7. *Líria também adoro a poética adeliana. O modo como ela expressa seu sentir poético é singular.

    *Lou,

    feliz que tenha apreciado o artigo. Como sabe, amo a poesia feita por mulheres e a de Adélia, das mineiras de modo geral, é maravilhosa.

    Beijos, minhas queridas. Grata pela presença!

    H.F.

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  8. Adélia é tudo de bom... Obrigada!!!!!!!!!!!!!
    Beijos
    Deliane.

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