domingo, 16 de agosto de 2009

Ma-gritte, Nina Ri-se


O “Maria Clara: simplesmente poesia”, espaço virtual de vozes femininas, encontra-se em celebração. É a estréia da poetisa Nina Rizzi que inicia a sua participação no blog com uma postagem rica em linguagens, conceitos e sentidos.

Nina Rizzi - professora de história e arte com formação em História, pela UNESP de Franca/MG - é uma artista que demonstra diversidade e jovialidade em suas criações. Em seu espaço “ellenismos”, a poetisa publica poemas de alta sensibilidade poética; apresentando enorme riqueza contextual em suas escritas ao propor diálogos entre textos e obras artísticas.

Na Web, Nina participa de vários celeiros coletivos de arte e literatura, onde se destacam os sites Escritoras Suicidas, O Gato da Odete e Germina Literatura, dentre outros não menos significativos.

Em sua estréia no Maria Clara, a autora apresenta o poema “ma-grittando”. Texto que se divide em três atos e estabelece diálogos com as obras do artista plástico belga René Magritte (1898-1967) a partir de conceitos apresentados pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002).

Para celebrar a entrada de Nina Rizzi ao projeto Maria Clara: simplesmente poesia, este artigo propõe refletir alguns elementos imbricados em seu poema de estréia no blog, buscando apontar alguns caminhos de leitura a partir das fontes contextuais expressas pela própria poeta em sua postagem.

Inicialmente, o leitor se depara com a construção do título “ma-grittando”, o que requer uma reflexão. A complexidade do título pode ser vislumbrada a partir das contextualizações propostas entre imagens poéticas e conteúdos, que não se antagonizam, se complementam e formam uma nova realidade poética.

Literariamente, a expressão artística é comumente associada a “grito”, a relação arte–despertar da consciência. Lembremos a célebre frase de Cecília Meireles: “poesia é grito, mas transfigurado” (apud BOSI, 1972).

Assim, o poema apresentado por Nina Rizzi pode ser lido a partir de dois ângulos de expressividade: o da imagem - da metáfora propriamente poética -, e do campo contextual – da soma de valores que o texto desperta, desenvolve, comunica.

Em seu post, a artista realiza intertextualidade com nove obras de René Magritte. Daí que o prefixo “ma” se refere às letras iniciais do sobrenome do artista; e o verbo “gritando” ao universo poético-metafórico da obra do artista agindo sobre a expressão da poetisa. Desse modo, a autora, propondo um trocadilho entre nomes, oferece nortes de significação para compreensão do todo textual.

A exposição das telas de Magritte, anterior a expressão textual da poetisa, não é pura acomodação entre imagem e palavra. A autora convida o leitor a se inquietar, a se perturbar com as imagens; e, a “partir de”, refletir os conteúdos de sua mensagem. Tal argumentação pode ser considerada se o leitor observar alguns vértices de análise atribuídos à obra de René Magritte.

Segundo Márcia Arbex (2007), em seu ensaio As metáforas Picturais de René Magritte, as imagens expressas pelo artista assumem códigos especiais, tecendo metáforas que remetem o expectador à experiência poética. Tal realidade fora considerada pelo próprio Magritte, onde o artista alega que as suas formas picturais compõem “figuras do visível”, mas em uma ordem que atenda aos interesses do desconhecido e do mistério (MAGRITTE apud ARBEX, 2007, p. 152).

Dentro dessa perspectiva, a função das imagens na obra de Magritte, reflete Arbex (2007), não é ornamental, nem puramente descritiva; tendo em vista que: “Seu objetivo é desorientar o espírito, comover de modo violento, provocar a ‘centelha’ poética, surpreender e desfazer as relações lógicas, contrariamente à metáfora no sentido retórico e convencional, em que é preciso que haja entre os termos aproximados, alguma identidade, alguma analogia” (ARBEX, 2007, p. 153).

Entretanto, se se considerar o todo contextual inerente ao poema, poder-se-ia vislumbrar que o texto, além de estabelecer diálogos com os quadros de Magritte, dialoga com as idéias expressas por Bourdieu, dentre elas o de violência simbólica, reprodução, habitus e resistência cultural. O que leva a crer que a autora busca a intersecção entre as atmosferas poéticas sugeridas nas telas do pintor aos horizontes conceituais do sociólogo francês.

Conceitos que vêm amplamente sendo investigados no campo das ciências sociais, servindo como fundamentação teórica para o estudo das problemáticas relacionadas à educação e às relações de dominação entre classe e gênero.

Desse modo, desde a construção do título à exposição de quadros e blocos de escrita, Nina Rizzi sugere uma articulação de pensamento entre as obras de René Magritte aos conceitos de Bourdieu, sobretudo no que se refere às noções de violência simbólica e reprodução de consciência dominadora. Essas considerações podem ser vislumbradas se o leitor observar o universo temático expresso pela autora nos três atos de “ma-grittando”. Passemos para alguns aspectos imbricados em sua escrita.

A autora introduz a primeira parte do poema a partir da exposição da pintura de Magritte que ilustra uma chuva de homens com chapéus de coco. Por meio da tela, a autora apresenta o seu objeto de observação e convida o leitor a refletir as anomias presentes no organismo social em uma sociedade capitalista dividida em classes; que, aparentemente, sugere uma organização social harmoniosa, entretanto delimita espaços e produz a “marginalidade”. Leia-se a primeira estrofe do poema:


há homens chovendo

num quadro

e há infinitos quadros

de crianças que chovem

abandonadas em estações.


A partir da descrição de aspectos intrínsecos à obra de Magritte, Nina Rizzi traz à tona a temática da “consciência reprodutora” ao inferir a “recipientalização” do ser humano a partir de processos de violência simbólica em instituições educativas, onde as forças materiais (coisas) exercem forças simbólicas (interiorização de valores). E, nesse universo de coisas e significados arbitrários se podem vislumbrar “flores orientais num diário escolar”.

Segundo Bourdieu & Passeron (1975), a educação, enquanto prática institucionalizada, tende a operacionalizar forças simbólicas de coação sobre os sujeitos. A escola, como instituição vinculada ao Estado, representa arbitrariamente os interesses das classes dominadoras, de modo a impor os modos de pensar, ser e agir das classes hegemônicas sobre as culturas populares. Todavia, cada grupo social possui suas próprias percepções e representações de mundo, compondo modos particulares de existir e se relacionar com o meio social. Por isso, Bourdieu considera a ação pedagógica exercida pela educação institucionalizada uma violência simbólica, já que pretende a universalização de valores das camadas dominantes da sociedade que, por sua vez, reproduz consciências e cria habitus mediante representações de classe (BOURDIEU; PASSERON, 1975; SAVIANI, 1991).

Desse modo, a ação pedagógica exercida pelas instituições educativas funciona como forças simbólicas, já que as classes privilegiadas, detentoras das forças materiais, também dominam as forças culturais; nomeando o que é belo e bom e desprezando tudo aquilo que julga estar à margem de sua escala de valores (BOURDIEU; PASSERON, 1975; SAVIANI, 1991).

Na segunda parte do texto, Nina Rizzi tece o fenômeno da mecanização, do automatismo do ser em decorrência da produção material que produz a transformação da paisagem urbana e determina as relações entre homens e mulheres. Nessa passagem, a autora também estabelece analogia ao campo metafórico expresso por Magritte, propondo relações com a famosa tela do cachimbo:


há um cachimbo que é um cachimbo

- ah, a cidade não dorme

e as máquinas não param

e a fumaças no cais

e em mim

e em tudos


Todavia, contrariamente a relação entre forma e sentido na obra de Magritte, onde a imagem se constrói no plano do visível para evocar uma nova realidade metafórica que, em síntese, estabelece uma relação arbitrária com a significação atribuída ao conteúdo das palavras (ARBEX, 2007). A autora adverte o leitor que o “cachimbo” (coisa) é a representação exata da nova ordem social estabelecida (campo de significação); onde máquinas não param de produzir e a fumaça compõe as cores da cidade. Nessa estrofe, a autora trabalha as imagens poéticas a partir de analogias de aproximação para elucidar o caos que o modo de produção capitalista exerce sobre a vida.

Além de explicitar a destruição do ser e do planeta, Nina Rizzi faz alusões às ideologias dominantes legitimadas através da ação do Estado que, por meio de leis e instituições públicas, produz automatismos e reforça a marginalidade. Para tanto, a poetisa utiliza expressões que localizam o que é específico à subjetividade humana, dentre elas o sonho e a capacidade de reinvenção. Através da expressão “mão esquerda do estado”, a autora localiza o que é próprio ao eu subjetivo que, por sua vez, se mantém à margem de uma escala de valores hegemônicos.

A relação entre as metáforas sugeridas na obra de Magritte ao pensamento expresso por Bourdieu perpassa toda a escrita. Ainda na segunda parte do texto, Nina Rizzi convida o leitor a refletir questões relacionadas à interiorização de valores, portanto de violência simbólica, estabelecendo analogia com as relações de poder entre gênero que se legitimam também por meio da ação do Estado. Leia-se a passagem:


uma mulher querendo abortar

o homem invadido em si

invasora mão direita do estado.


Ao final do segundo ato, a poetisa propõe a desfragmentação dos homens e a recuperação de sua consciência autônoma, por meio do reconhecimento de ser que hospeda, dentro de si mesmo, a coação social. Nessa última estrofe, a autora poetiza: “olhamo-nos ao espelho / e as carteiras estão vazias”.

Novamente, percebe-se a relação entre imagem e palavra presente na obra de Magritte, cuja metáfora assume uma função “esvaziada” do sentido usual da coisa ao seu correspondente lingüístico. Nesse contexto, adverte Arbex (2007): “a imagem surrealista é uma metáfora não convencional, pois nela se verifica a fusão entre elementos que aparentemente nada têm de comum para criação de uma nova realidade; o que, em princípio, subverte a base do pensamento metafórico” (ARBEX, 2007, p. 149).

Entretanto, para designar as imposições de valores sobre os homens, a autora faz uso de palavras que localizam os conteúdos de sua explicitação, dentre elas “carteiras”, “pássaros”, “gaiolas”; substantivos que assumem uma atitude de correspondência aos conceitos de Bourdieu - consciência, liberdade, aprisionamento - em razão das forças materiais que determinam, em grande medida, as relações sociais.

Tais considerações podem ser observadas na terceira e última parte do texto, onde a autora alega que:


[...] há consciências

incooptáveis

incorruptíveis

utópicas

que bradam e sonham e distribuem

: esperanças que duram

não mais que um dia...


Fazendo uso novamente de quadros de Magritte, Nina anuncia o fenômeno da resistência cultural nas minorias distribuídas em grupos, subgrupos e guetos que, através da arte, encontram mecanismos de resistência à invasão simbólica, mantendo-se à margem do sistema de representações da cultura dominante. E dentro desse universo marginal, isto é, “à margem esquerda do estado”, homens e mulheres são “[...] livres / a cantar bailar gritar girar / chover / pelas fumaças / por todos os lados, / estações e cais e tudos”.

Por fim, convém destacar a simplicidade e beleza intrínseca a linguagem poética adotada pela autora que, embora desenvolva em três atos uma temática profundamente densa, permitiu externalizar com leveza de espírito a sua expressão artística.

Com fluidez e, simultaneamente, intensidade, Nina Rizzi oferece evasão à subjetividade, expandindo as suas representações sobre a marginalidade, que, segundo Bourdieu, se desenvolve em razão da divisão de classes e da violência simbólica. Porém, como parte do seu processo de resistência, a autora assume, ao final do texto, uma postura não-pessimista e deixa emergir o otimismo - enquanto Magritte ludicamente grita – do seu riso de me-Nina.


Referências

Diretas:

ARBEX, Márcia. As metáforas picturais de René Magritte. In: Revista 34, 2007, p. 147-161.

BOURDIEU, P.; PASSERON, J-C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1975.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 24. ed. São Paulo: Cortez, 1991.

Indiretas:

A ordem secreta das coisas: René Magritte e o jogo do visível.

Dominação e reprodução na escola: visão de Pierre Bourdieu.

Notas:

*Tomei emprestada a expressão "Ri-se" de Henrique Pimenta, do Bar do Bardo. Na Web, o poeta costuma chamar a poetisa de Nina Ri-se.

**Para apreciar as telas de René Magritte acompanhadas do poema de Nina Rizzi, dirija-se ao Maria Clara: Simplesmente Poesia.