sábado, 1 de março de 2008

Crônica: Gentileza Gera Gentileza


Gentileza Gera Gentileza[1]

Por Hercília Fernandes

Vive-se uma época de retrocesso à barbárie. As bandeiras e os instrumentos de guerra, no entanto, já não são os velhos e encardidos panos, nem as espadas grotescas e as armaduras enferrujadas sobre/sob cavalos altivos. Aprimoram-se os discursos, inventaram idéias, falsearam a realidade, visto que “apagaram tudo e pintaram tudo de cinza[2]”...
A palavra, outrora dita para esclarecer os homens, tornou-se objeto de dominação, exercício de poder e de saber. O amor, sentimento humano maior, tornou-se objeto de riso, siso, fabulação...
E, nesse grande palco da “modernidade”, anjos rebeldes são postos ao fogo, crianças e idosos jogados às próprias sortes. Mulheres violentadas, silenciadas e mutiladas em seus desígnios. Homens morrem a cada dia e mortos-vivos enfeitam cenários; e, autômatos, enredam cenas reais nessa grande comédia da vida moderna.
O palco não é mais o “bem perdido”, o locus amoenus redentor - élan capaz de oferecer luz às idéias. O palco, composto por “flores de cimento”, não configura mais a natureza idílica gritante, mas as pedras cuidadosamente emparelhadas, ornamentalmente bem elaboradas...
Compõem-se as cores da cidade: os tons opacos, nublados, acinzentados; mãos e sinais fechados, olhos empoeirados... Cenário rude, pobre, nefasto. Nesse teatro mortificado surge então o fogo e, com ele, a devassidão, a claridade e a normalização... Entretanto, não é o fogo o temível vilão! Não é o fogo o terrível atroz da multidão!...
O fogo deixa seus rastros pela cidade e, com as nuvens de fumaça, vem acordar a criatura humana da sua rudeza e automatização. Nesse palco de desolação, um homem se levanta e grita à multidão: o MAL reside no coração!
Um homem - um homem "com a sua dor estampada na cara" - entra em cena nesse “circo” de horrores. Nele, Ele recolhe os doentes, expande sonhos, alimenta crianças, velhos, “lobos” e “dementes”... Um homem com a sua dor, com a dor escancarada na longa barba, grita: só existe um caminho, o caminho é o do amor!...
Mas, as pessoas estão por demais ocupadas para receberem o pão na farta mesa. Seus corações, presos no cimento e no vazio, ignoram “palavras de Gentileza”; e, não percebem quantas cores podem existir no mundo, na natureza; E, recusam-se à frase: “Gentileza Gera Gentileza”!
E, mesmo com a sua tamanha e gentil Gentileza, o circo continua pegando fogo e as pessoas que, “apressadas passam pela cidade”, caminham silenciadas por intermináveis círculos de escuridão, posto que: “[...] a palavra no muro fora coberta de tinta"...
O homem, com a sua dor, é afastado da cega e homogênea multidão, tiram-lhes a mobilidade do estandarte e os instrumentos de luta; tiram-lhes, da palavra, a trindade redentora: o “amorrr”. Amor composto pelo “R” do Pai, “R” do Filho e “R” do Espírito Santo. E o circo novamente invade a escola, e a escola rouba a vida e o tom cinza pinta negritudes nos corações.
Porém, a “gentileza que Gentileza gera” se eterniza e, em meio às flores de cimento, o profeta - louco, poeta, criança - indaga os mortos-vivos e deixa o questionamento como herança:
- “Qual o mais importante: o livro ou a sabedoria?”.
Eis, aí, a gentileza na sofia do Messias!




  • Descrição: Marisa Monte, através da música "Gentileza" pertinente ao Cd “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor”, difunde os ensinamentos espirituais do Profeta Gentileza. Partindo dos princípios de Gentileza, a cantora reflete: “Amor palavra que liberta, já dizia o Profeta”!


Notas:

[1] Texto escrito com base na vida e missão espiritual abraçada pelo Profeta urbano Gentileza - José Datrino (1917-1996) - na cidade do Rio de Janeiro. Para saber mais sobre a história do Messias Urbano consulte o site Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Datrino e os textos de Leonardo Boff sobre o espírito do profeta Gentileza. Artigos disponíveis em: http://www.leonardoboff.com/site/vista/2004/abril30.htm e http://leonardoboff.com/site/vista/2004/maio07.htm.

[2] Gentileza In: Cd “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor” (Marisa Monte).


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Expressão feminina na poesia: Adélia Prado


Adélia Prado: liberdade à voz feminina[1]


Por Hercília Fernandes


Uma das maiores representantes da literatura feminina brasileira é a poetisa e escritora mineira Adélia Prado (1935)[2]. Sua voz despojada, simples, direta, e, simultaneamente, lírica. compõe marcas que definem o estilo incontestável da autora dentro do panorama atual da poética feminina.

A expressão lírica da poetisa, no entanto, não se apresenta carregada por sentimentalismos piegas - ao contrário! –, expande-se numa poética voltada para o conhecimento do eu, o questionamento do real e os valores ainda circundantes na sociedade.

A condição da mulher, as exigências sociais em torno das atribuições femininas e a missão humano-artística abraçada pela poetisa são elementos desencadeados por seu lirismo objetivo e, ao mesmo tempo, profético. Como se podem observar nesses traços:


Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

(PRADO, Adélia In: Com licença poética).


O amor romântico e os ideais utópicos consolidados a partir da ótica e conquista masculina servem-lhe de tessitura para a sua composição questionadora, sobretudo no tocante aos valores herdados ainda da tradição patriarcalista, paternalista e sexista que conferem ao gênero masculino a liberdade e o domínio nas relações afetivas e sócio-humanas; e, às mulheres, a contenção e abnegação dos sentimentos e os apelos sensuais.

A autora - com a suavidade que é lhe própria e contrariando as convenções impostas – indaga o amor romântico e apresenta certa preferência pelo amor real; àquele que, desraigado de ilusões, baseia-se no respeito mútuo, na liberdade de expansão e na igualdade entre os gêneros. Visto que, no dizer da poetisa, o amor feinho


[...] não olha um pro outro.

Uma vez encontrado, é igual fé,

não teologa mais.

Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo

e filhos tem os quantos haja.

Tudo que não fala, faz.

Planta beijo de três cores ao redor da casa

e saudade roxa e branca,

da comum e da dobrada.

Amor feinho é bom porque não fica velho.

Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:

eu sou homem você é mulher.

Amor feinho não tem ilusão,

o que ele tem é esperança:

eu quero amor feinho.

(PRADO, Adélia In: Amor feinho).


Com o olhar sob a realidade e as relações humanas, indagando os valores morais, as normas e convenções sociais, Adélia também expressa as inquietações profundas do seu eu-lírico e reflete o processo de mecanização dos sujeitos; que, sofrendo o peso das atribuições da vida moderna, desvinculam-se dos sentimentos espirituais, por ora essenciais para efetivar a vida humana, conforme se observa em “seu” ensinamento poético:


Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo.

Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,

ela falou comigo:

"Coitado, até essa hora no serviço pesado".

Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.

Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo.

(PRADO, Adélia In: Ensinamento).


Por essas e outras razões, a poética adeliana exprime, além dos sentimentos profundos do eu-lírico, uma concepção de homem e sociedade que busca romper com os valores então enraizados na realidade brasileira, dentre eles a crença nas “verdades” provenientes da ciência e, sobretudo, as exigências em torno do papel da mulher; isto é, de sua função social no emaranhado das relações humanas. Função que a própria Adélia profetizou enquanto “bandeira”. Já que, desde logo, a autora apresentara consciência do fardo que a sua condição de mulher a faria carregar; porém, sem desmerecer a sua luta, então aceita enquanto “sina”. Missão poética capaz de fundar “linhagens e reinos” já que a mulher apresenta-se como um ser “desdobrável” e, Adélia, sem pretender ser autoritária, disse: “Eu sou”!


OBRAS DE ADÉLIA PRADO

POESIA

Bagagem, Imago – 1976
O coração disparado, Nova Fronteira – 1978
Terra de Santa Cruz, Nova Fronteira – 1981
O pelicano, Rio de Janeiro – 1987
A faca no peito, Rocco – 1988
Oráculos de maio, Siciliano – 1999

PROSA

Solte os cachorros, Nova Fronteira – 1979
Cacos para um vitral, Nova Fronteira – 1980
Os componentes da banda, Nova Fronteira – 1984
O homem da mão seca, Siciliano – 1994
Manuscritos de Felipa, Siciliano – 1999
Filandras, Record – 2001

ANTOLOGIA

Mulheres & Mulheres, Nova Fronteira – 1978
Palavra de Mulher, Fontana – 1979
Contos Mineiros, Ática – 1984
Poesia Reunida, Siciliano - 1991
Antologia da poesia brasileira, Embaixada do Brasil em Pequim - 1994
Prosa Reunida, Siciliano – 1999

SUGESTÃO DE LEITURAS: Ensaios, crítica e fortuna literárias


ENTREVISTA:


CONSULTAR BIOGRAFIA:


NOTAS:

[1] Para construção deste artigo utilizou-se das fontes indicadas como “sugestão de leituras”. E, a bibliografia da autora e os poemas utilizados foram extraídos do site Jornal de Poesia e do Projeto Releituras.

[2] Adélia Luzia Prado Freitas, filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa, nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935.


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Artigo: O ensino criativo & o caso da poesia

Educar com criatividade, garantir o direito de sonhar[1]


Por Hercília Fernandes


De acordo com Gaston Bachelard (1884-1962), uma das maiores faculdades humanas é a imaginação[2], sendo a criança um sujeito naturalmente sonhador. Para esse filósofo das ciências e da imaginação, o sonho desperto - que difere do sonho noturno -, quando bem dirigido, traz grandes benefícios à vida humana; posto que a imaginação é uma faculdade capaz "de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade[3]” que, posta em contato com a razão, a imaginação mostra a força inventiva, criadora e fornece inúmeras possibilidades ao pensamento lógico-sistemático. Para o filósofo, quando a razão é provocada pela imaginação, a razão constituída transforma-se “em razão experimental, suscetível de organizar surracionalmente o real[4]”, promovendo assim, por meio da relação imaginário-realidade, aprendizagens significativas e concretas.

Todavia, a escola tem, historicamente, desprezado a potencialidade da imaginação e criatividade da criança na relação ensino-aprendizagem formal: a sua capacidade de aprender pelo sonho, pela arte, pelo diferente...; Ou seja, a escola tem limitado a “arte de educar” pelo sensível, pelo prazer, pelo belo. Isso se deve, em parte, na crença exclusiva do poder da razão humana, gerada a partir do Iluminismo que, saída a fase de encantamento e ignorância do homem primitivo, torna o homem capaz de dominar a natureza física e a sua própria; Criando assim um novo mito: o mito do homem racional, provido de poderes cognitivos, porém carente de emoção, sentimento e subjetividade.

Nesse sentido, sendo a escola um espaço de socialização e formação humana onde perpassam paradigmas, valores e aspirações de uma determinada época e contexto social, tem sido protagonista da exclusão da criatividade, da subjetividade, diversidade e pluralidade, da aprendizagem pelo imaginário e pelo estético; e, por fim, da construção da autonomia dos sujeitos.

Entretanto, a partir do século XX, a expansão (e difusão) das pesquisas em educação tem comprovado a relevância das teorias científicas em torno do imaginário, da ludicidade, das múltiplas linguagens, da diversidade nos procedimentos de ensino - dentre outras temáticas - para o desenvolvimento e à aprendizagem de um ser em face de crescimento.

Nesse sentido, cumpre-se, neste ensaio, propor uma discussão em torno do que se compreende por “criativo no ensino”; partindo da premissa de que a criatividade do professor é uma qualidade da natureza do seu “eu” interligada as suas questões emocionais e ao outro/aluno (WOODS, 1995), porém, também uma competência que pode ser desenvolvida tecnicamente, já que ser “criativo” hoje na escola é, além de tudo, uma exigência da pós-modernidade, visto que o educando estar em constante contato com diversas fontes de saber e informações circundantes além dos muros da escola (LIBÂNEO, 2001)[5].

Assim, considera-se aqui que a atitude do educador em sair da exaustiva rotina curricular-pedagógica tradicional, bem como a utilização de diversas linguagens e procedimentos técnico-metodológicos na sala de aula são formas de garantir o direito da criança “sonhar”, já que ela é, por natureza, um sujeito sócio-humano criativo.

A criatividade no ensino

Segundo Peter Woods (1995), o ensino criativo se associa a subjetividade do educador – do seu próprio EU – e de como faz uso de sua autonomia na sala de aula. Tornando-se capaz de sair da rotina diária através de atitudes e expressões inovadoras, objetivando, com essas “novidades”, a construção de valores e princípios morais, saberes e o desenvolvimento de competências afetivas, psicolingüísticas, cognitivas, etc.; bem como, a superação de dificuldades e a obtenção de resultados positivos de aprendizagem.

Todavia, surgem propriamente as indagações: O que é ser criativo? Quais são as características básicas de um ensino criativo?

Para Woods, a criatividade do professor relaciona-se diretamente a sua autonomia, a dimensão subjetiva e afetiva, como também, as suas convicções e qualidades técnicas, e as ideologias e aspirações da sociedade e do sistema educativo vigente. No tocante ao “eu” do professor, o autor diz que, na prática pedagógica, o docente deve ser guiado pelo “eu” do “outro”; isto é, cabe ao educador considerar que além do seu eu, há também um “eu” no “aluno”. Assim, o docente tem que equilibrar a própria subjetividade em razão dos aspectos individuais e coletivos comuns aos educandos: o contexto sociocultural, a história de vida, os conhecimentos prévios, a política interna da escola, dentre outros fatores. Visto que a intervenção pedagógica inovadora deve ser potencializada na sala de aula para promover a imaginação e a criação e não para bloquear o processo de construção do conhecimento.

Imaginação e holismo: características do ensino criativo

Para Woods (1995), existem duas características que configuram o ensino criativo: imaginação e holismo. A competência imaginativa diz respeito à “capacidade de tomar o lugar do outro e de ensaiar potenciais interações antes do conhecimento[6]”. Assim, poder-se-ia entender que o despertar da imaginação do educador é pressuposto fundamental para que se possa potencializar formas expressivas, reflexivas, fontes e procedimentos técnicos satisfatórios na escola, de modo que a “inovação” do docente remeta à construção criativa e dinâmica de saberes e mudanças de atitudes nos educandos. Ou seja, a competência imaginativa do educador envolve também a sua capacidade de comunicação, de incentivação durante a apresentação de um tema ou proposta de um projeto de trabalho, preparando o espírito dos aprendizes à aprendizagem. A imaginação do professor também diz respeito a forma como ele articula fontes, informações, meios e recursos durante o processo de construção do conhecimento.

Outra característica do ensino criativo é o que Woods chama de “um certo holismo”, que envolve uma concepção de educação que compreende o educando e o ato de educar em sua totalidade, isto é, a competência “imaginativa” e “racional” do aprendiz. Em suas palavras:

“O ensino holístico se relaciona ao pensamento criativo combinado ao pensamento racional, que relacionados transforma o ato de ensinar uma arte[7]”.

Nesse contexto, a visão holística de educar compreende o sujeito-educando e o sujeito-educador como seres complexos, possuidores de especificidades e competências múltiplas, e, que, pode isso, devem receber uma educação que privilegie o olhar, a sensibilidade, a imaginação, o prazer, o movimento do corpo..., a fim de despertar a consciência e construir um sujeito em sua totalidade.

Por uma pedagogia do sonhar: o caso da poesia

Segundo Bachelard, apesar da imaginação ocorrer subjetivamente contém elementos materiais que se associam diretamente à experiência e ao conhecimento. Nesse sentido, sendo a poesia de domínio do imaginário - já que o poeta combina devaneio, saberes instituídos e técnicas literárias específicas -, faz-se necessário que se “ensine a sonhar” para que se possa potencializar a faculdade imaginativa do educando. O devaneio, no sentido da imaginação poética, pode servir para acordar a criatura humana para os mistérios da vida e potencializar competências, como bem destaca Bachelard:

“Com a poesia, a imaginação se coloca no lugar onde a função do irreal vem seduzir ou inquietar – sempre despertando – o ser adormecido em seus automatismos [8]”.

Desse modo, é necessária à ciência pedagógica a consciência de que é preciso sentir, sonhar, humanizar-se, como já acenava Cecília Meireles no início do século XX:

“Talvez a ciência pedagógica não diga tudo, se não for animada por um sopro sentimental, que a aproxime da vida quando apenas começa; desse lirismo que os homens, com o correr do tempo, ou perdem, ou escondem, cautelosos e envergonhados, como se o nosso destino não fosse o sermos humanos, mas práticos[9]”.

A educação estética pode abrir diversas possibilidades para uma consciência em crescimento e à ação educativa formal. Visto que, através da imaginação poética, o sujeito passa a ver a vida noutra dimensão, adquire uma nova visão de mundo, de si mesmo e vislumbra possibilidades concretas. Entretanto, “o sonhador não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo[10]”. Assim, é tarefa da pedagogia pensar a profundidade desse espelho, como apontam Caruso e Freitas (2003):

“É fundamental que seja o educador a dar profundidade a esse espelho, através de sua própria imagem, reflexo de um conjunto de valores e saberes adquiridos. É ele que motivará seus alunos a sonharem, sob pena de levá-los à frieza da incredulidade. Sua postura diante da vida – da própria vida e da vida dos outros – é determinante[11]”.

Nesse contexto, é tarefa da pedagogia, enquanto ciência da reflexão e da prática educativa, pensar uma educação que corresponda à totalidade do sujeito sócio-humano de maneira que as suas capacidades imaginativas e lúdicas, afetivas, sensitivas, abstratas e lógicas, sinestésicas, lingüísticas, espaciais, etc., sejam atendidas no ensino formal, possibilitando a construção de significados para a vida subjetiva e social do educando. Um ensino global que prioriza o imaginário e a criação, mas também o domínio de competências racionais e técnicas que levem o indivíduo ao trabalho e, dele, se regozijar com a produtividade.

Assim, pôr em evidência uma pedagogia do sonhar pressupõe a adoção de uma concepção de educação e práxis docentes equilibradas, desprovidas de posições extremistas que remetem a ações intencionais pautadas apenas em um “isto” ou em um “aquilo”.

Para refletir:

Abra sua imaginação, leia o poema “Passarinho” (FERNANDES, 2005)[12], ouça a melodia da canção, depois reflita como você utilizaria estes versos em uma prática pedagógica:


Canta, canta, passarinho.
Canta, encanta, esse lugar.
Canta, canta, bem fininho.
Canta, encanta, o céu e o mar.


Voa, voa, passarinho
Voa, voa, até cansar
Voa, voa, constrói seu ninho
Voa, voa, até pousar.


Canta, encanta esse lugar
Voa, voa até cansar.
Canta, encanta, o céu e o mar

Voa, voa, até pousar.


Hercília Fernandes

Mestranda em Educação (PPGED-UFRN). Especialista em Educação Infantil e Pedagoga (CERES-UFRN). Escritora e poetisa com dois livros publicados com apoio cultural do SESC-RN.

E-mail: fernandeshercilia@yahoo.com.br


Notas:


[1] Artigo apresentado em disciplina ministrada pela autora - "Didática" - no Curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (Caicó-RN), em Maio de 2007.

[2] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978.

[3] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978.

[4] RODRIGUES, Victor Hugo Guimarães. Gaston Bachelard e a sedução poética: a criação de um filosofar onírico. In: Revista Eletrônica Mestrado em Educação Ambiental. v. 15, julho a dezembro de 2005, p. 55. Disponível em: <http://www.remea.furg.br/edicoes/vol15/art05.pdf.> Acesso em: 05/02/2007. 2005.

[5] LIBÂNEO, José Carlos. Adeus professor, adeus professora: novas exigências educacionais e profissão docente. São Paulo: Cortez, 2001.

[6] WOODS, Peter. Aspectos sociais da criatividade do professor. In: NÓVOA, Antônio (Org.). Profissão professor. Coleção Ciências da Educação. 2 ed. Portugal: Porto Editora, 1995, p. 132.

[7] Idem, ibid.

[8] BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: BACHELARD, Gaston. Filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Vale Santos Leal. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1978, p. 195.

[9] MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3 ed. São Paulo: Summus, 1984, p. 30.

[10] CARUSO, Francisco; FREITAS, Maria Cristina Silveira. Educar é fazer sonhar. Centro de Brasileiro de Pesquisas Físicas / CBPF-CS-009/03, p. 4. Disponível em: <http://cbpfindex.cbpf.br/publication_pdfs/cs00903.2006_12_08_10_36_41.pdf.%3e%20Acesso em: 04/02/2007.

[11] Idem, ibid.

[12] FERNANDES, Hercília. Retrato de Helena. Natal-RN: Natal Gráfica, 2005.



terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Artigo: Música & Educação Infantil


Voz, canto, palavra: o fazer musical na educação infantil


Por Hercília Fernandes


Vivemos em um mundo vibrante, rico em diversidade de cores, formas, movimentos, sons... Um mundo em constante transformação, que se traduz pela dinamicidade das linguagens. Um mundo onde se apresenta, também, diversos contrastes. Entretanto, apesar de vivermos em um ambiente rico em imagens, continuamos, efetivamente, enviando as nossas crianças ao enfadonho mundo do “muro cinza[1]”. As nossas escolas, mesmo em época de grande avanço tecno-comunicacional, ainda se caracterizam pela transmissão verbalística de conhecimentos que não têm acompanhado a crescente rotatividade do mundo contemporâneo.

Partindo do princípio de que a música se constitui linguagem universal, e que independentemente de época, cultura ou civilização age positivamente sobre o homem, dada às suas características sócio-emotivas e simbólicas, é, portanto, não suscetível ao obsoleto, pois acompanha a evolução humana. Nesse sentido, importa-nos, então, levar ao educador infantil a reflexão acerca da relevância da atividade musical na infância. Almejando servir como instrumento de análise para construção de práticas docentes junto à criança que se traduzam: “[...] na necessidade de alegria que ela tem” (SNYDERS, 1997, p. 15), de modo a colorir o rotineirotomcinza com a multicolor alegria da palavra cantada.


A música e a criança: uma experiência com a linguagem

Nós, educadores infantis, em nossas práticas cotidianas, costumamos associar música à linguagem verbal. Na educação, a música vem servindo, ao longo da história, como pano de fundo para dar suporte à palavra. Isso significa que o fazer musical na educação infantil se apresenta, basicamente, como “[...] linguagem distorcida em sua modulação e ritmo” (JOURDAIN, 1998, p. 92). Porém, se olharmos profundamente para nossas crianças, veremos que a música as acompanha em muitos momentos: nas várias expressões e batidas rítmicas executadas nas mesas, cadeiras e demais objetos escolares; ou, simplesmente, cantando, dançando e/ou interpretando fragmentos de canções populares difundidas nos meios de comunicação de massa. Igualmente, em muitos casos, as crianças utilizam-se de canções até mesmo para desafiar os educadores, denunciando “nas entrelinhasque a sala de aula, nem sempre, é um lugar de alegria.

Para Robert Jourdain (1998), a música para a criança é, inicialmente, uma experiência com a linguagem verbal: “[...] a experiência musical pura nasce da linguagem e isto acontece aos poucos, a medida que as crianças adquirem competência em sucessivos aspectos da música” (Idem, p. 92). Assim, ela só faz a distinção entre essas duas linguagens quando passa a compreender outros aspectos da canção como, por exemplo, os contornos melódicos, as pausas e variações rítmicas. Todavia, os processos iniciais de aquisição da linguagem verbal e musical estão intimamente interligados: a oralidade auxilia o canto da criança, e o canto amplia a oralidade. Porém, consideramos, mediante a investigação sistemática dos pressupostos teóricos apresentados por Howard (1984), Jourdain (1998), Nogueira (2002) e Snyders (1997) que há na criança um potencial musical a ser desenvolvido, e que a própria atividade musical se constitui fonte de instrução, aprendizagens e desenvolvimento.

Dessa forma, propomos a discussão de que a música na educação infantil por se apresentar, e/ou se confundir, como recurso didático ou metodológico a serviço da rotina diária e dos projetos interdisciplinares tem tornado a sua existência, na sala de aula infantil, “desbotada” de emotividade e significância à criança. Em contrapartida, defendemos a hipótese de que a música deve ser tratada, no universo educacional, como linguagem própria, e, como tal, merece e requer cuidados específicos, podendo se integrar à interdisciplinaridade “[...] mas em condições que ela possa ressoar a nota própria” (SNYDERS, 1997, p. 135).

O papel mediador da palavra cantada na educação infantil

Os procedimentos metodológicos, apresentados a seguir, para uso da palavra cantada, propõem corresponder aos objetivos: apreciação, produção e reflexão musical. O nosso norte são as fases de desenvolvimento lingüístico correlacionadas ao contexto sociocultural das crianças, e, como ponto central, as dificuldades docentes no uso dessa expressão. Assim, abordaremos os elos comuns iniciais nos processos de aquisição da linguagem oral e musical, buscando técnicas adequadas a cada fase de desenvolvimento lingüístico, efetivando o papel sócio-interativo do canto à formação e cognição da criança.

O balbucio: “as primeiras notas

A criança canta antes mesmo de pronunciar as primeiras palavras, emite as primeiras notas através do balbucio e produz tons graves e agudos: “[...] são óbvios experimentos na produção dos tons” (JOURDAIN, 1998, p. 92-3). O balbucio dos bebês são também, os primeiros fonemas para a produção da fala. Esta fase inicial é tão essencial para o canto como para a oralidade. O educador pode contribuir para que a criança expresse ao máximo esses contornos melódicos, conferindo-lhe confiança e ofertando estímulos à percepção auditiva e psicomotora, buscando ampliar as relações sócio-afetivas aninhadas à prática musical, extraindo o papel mediador da música na relação voz-canto-palavra, quando:

  • Cantar para a criança, olhando-a atentamente, marcando o ritmo com palmas ou instrumentos;
  • Exagerar na articulação da boca e na dicção de palavras;
  • Cantar melodias simples (preferencialmente do folclore infantil);
  • Ofertar canções instrumentais que desperte a percepção e evolução dos tons na música; e, relaxe a mente e o corpo;
  • Oferecer à audição objetos com alturas, timbres e intensidades diversas;
  • Selecionar um repertório de uso diário e periódico;
  • Observar, registrar e refletir sobre as expressões das crianças.


A fala: “a canção

O canto da criança de dois anos não obedece a um padrão fixo de tonalidade. Isso se deve ao fato de ela ainda não ter internalizado os tons e as relações postuladas entre eles, fazendo com que seu canto desafine constantemente. Mas, por volta dos três anos, a criança começa a perceber que as melodias são construídas com intervalos e durações distintas, passando a cantar com maior precisão. A partir dos quatro anos, a criança entende a música como atividade distinta às palavras, observando outros aspectos na canção além do texto verbal. A fala permite, entretanto, “[...] que a criança articule as palavras de modo a corresponder à altura dos tons” (NOGUEIRA In SOUZA, 2002). Assim, por meio da imitação do canto dos adultos, a criança internaliza os objetos do meio, e passa a fazer música através da associação dos signos verbais aos signos sonoros. Nessa fase, é importante o educador:

  • Organizar um repertório com canções para apreciar, cantar e dramatizar;
  • Determinar o tempo e o espaço adequado;
  • Fazer exercícios de respiração e de aquecimento da voz;
  • Diferenciar o grito do canto;
  • Cantar a melodia repetidas vezes;
  • Acompanhar o canto com violão ou teclado; ou, com uso de play backs;
  • Escolher canções significativas, cujo texto verbal desperte interesse e reflexão;
  • Deixar as crianças manipularem as notas do teclado, partindo dos tons graves para os agudos e depois o inverso;
  • Observar os sons do silêncio;
  • Formar um coral uníssono;
  • Observar, acompanhar e registrar as atividades, lembrando sempre que a música deve alegrar a criança, daí que a sua participação deve ser espontânea.


Conclusões

A música na educação infantil antes de contribuir para a criança aprender a leitura e escrita de palavras e numerais, ou de apreender os valores de sua cultura, deve aprimorar a competência musical, e, esta, será favorecida quando nós, educadores, despertarmos as nossas “[...] faculdades musicais adormecidas” (HORWARD, 1984). É necessário voltarmos à infância e desenvolvermos os nossos ouvidos, para não tirarmos das crianças o direito de serem musicais. Fazer música é um fenômeno interior, mas não desvinculado das ações externas. A atividade musical além de promover alegria, contribui para aproximar as pessoas, torná-las sensíveis; e, é a sensibilidade do olhar infantil que pode transformar “os muros cinza” da escola em campos floridos e coloridos do saber.

Para terminar o texto sem, no entanto, esgotar a temática, deixa-se esses versos como instrumentos de reflexão:

Vejo mãozinhas desenhando,
pintando um jardim.
Vejo olhinhos voando,
contornando:
O rosa na rosa,
o vermelho no carmim.
Vejo em cada mão miúda:
Sonhos, afeição, ternura.
Vejo em cada olhar, quê figura:
O medo e a travessura.
Mãos e olhos buscam colorir
Cada flor desse imenso jardim
Como se do mundo pudesse esvair
O cinza do muro que,
insiste em persistir.

(FERNANDES, Hercília. In: O muro cinza: 2005).





Referências Bibliográficas


HORWARD, Walter. A música e a criança. São Paulo: Summus, 1984.

JOURDAIN, Robert. Música, cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

SOUZA, Regina Célia de (Org.). A práxis na formação de educadores infantis. Rio de Janeiro: DP & A, 2002.

SNYDERS, Georges. A escola pode ensinar as alegrias da música? São Paulo: Cortez, 1997.



[1] Este e outros substantivos associados à cor cinza visam estabelecer analogias com as práticas educativas tradicionais, ainda, vigentes nas instituições infantis. No tocante à música, são exemplos: algumas práticas de canto relacionadas à fila, à merenda, à leitura de letras, sílabas, palavras e numerais; o uso de paródias adaptadas aos conteúdos escolares, dentre outras. Todas essas práticas banalizam e mecanizam a presença da música na educação infantil, tornando a sua existência desbotada de emotividade e significância.