No final de 2010, após os eventos de lançamento da obra Maria Clara: uniVersos femininos, em alguns estados brasileiros, livro que tive o prazer de organizar, convidei a poetisa e professora Ana Santana Souza, doutora em Literatura Comparada (UFRN), a um debate sobre poesia elaborada por mulheres na contemporaneidade, situando o livro das “marias claras”, por ela prefaciado, no conjunto das discussões sobre gênero e poesia.
Entretanto, à época do convite, bem como envio e recebimento das questões, encontrava-me em um processo intenso de estudos e trabalhos acadêmicos que impossibilitaram a organização da matéria. Dentre essas atividades, a elaboração do artigo: “Voz Poética Feminina na Era Blog: Os Casos da Maria Clara”, estudo apresentado em Simpósio de Letras realizado, no segundo semestre de 2010, na UFCG (Campus de Cajazeiras), cuja escrita ampliada será, por estes dias de fevereiro, publicada integralmente no dossiê "Literatura Contemporânea: escritura e resistência", da Revista Línguas & Letras, do Programa de Pós-Graduação de Letras, da Unioste-Paraná (Ver Resumo já disponível no site).
A boa notícia da aceitação e publicação do artigo levou-me a rever a entrevista realizada com Ana Santana, já que, dentre os pontos de discussão, constavam problemáticas e categorias de análise que, no período, estava desenvolvendo em meu estudo sobre as vozes das “marias claras”. Dentre elas lirismo feminino, poética do silêncio e transgressão.
Dessa forma, pela riqueza de conteúdos expressos pela poetisa e professora Ana Santana em torno deste debate, venho compartilhar, no aqui e agora, os dados da entrevista anteriormente realizada que, conforme os leitores e as leitoras confirmarão, merece e deve ser apreciada por muitos. Passemos ao debate e, posteriormente, aos trabalhos acadêmicos e a uma pequena mostra da vasta produção poética da entrevistada.
DEBATE LITERÁRIO
1 - Você é doutora em Literatura Comparada (UFRN), professora de Teoria Literária (UNP) e, também, poetisa. Suas produções se fazem conhecer tanto na universidade como em publicações de artigos e livros. Fale-nos um pouco de sua trajetória como estudiosa e autora, especificando o seu relacionamento com a poesia:
Minha trajetória como estudiosa e autora começa na escola. Em casa não tinha um ambiente muito favorável à formação leitora, por isso compreendo que a escola exerce um papel fundamental na educação das pessoas, principalmente daquelas que não têm um acompanhamento familiar. Foi a escola que me levou a ler. Posteriormente, passei a ter acesso a livros de bolso, revistas de fotonovela e outros gêneros que me chegavam aleatoriamente. As leituras me levaram à escrita. As experiências mais significativas, aquelas que permaneceram na minha memória, foram as que apresentaram uma finalidade lúdica. Lembro de uma caderneta que eu possuía para escrever contos, lembro também de um diário em que eu registrava minhas tristezas e alegrias. Esta prática me familiarizou com a escrita, então o resto foi resultado dos estudos na graduação e, especialmente, na pós-graduação. Inclusive a produção poética. O que eu escrevia antes do mestrado com pretensão poética não tinha nenhum suporte teórico que me desse a consciência do que eu estava fazendo. A partir dos estudos sobre poesia é que passei a escrever com uma noção mais clara do que significava aquela atividade.
2 – Falando da produção poética atual, especialmente da poesia feminina. Muitos teóricos da literatura, ao discutir os cânones que distinguem a criação de homens e mulheres, dentre eles a crítica Nelly Novaes Coelho, afirmam que já não se pode vislumbrar, na contemporaneidade, um universo especificamente feminino na poesia elaborada por mulheres. Tendo em vista que a criação atual parece transcender a "poética do silêncio" ou a pura externalização das afeições, dores e impressões do cotidiano das mulheres. Como você reflete a posição do eu-lírico feminino na criação contemporânea? Pode-se dizer que existe eu-lírico feminino? Se existe, quais rupturas e/ou (des)continuidades se podem traçar diante os valores historicamente inscritos/expressos nas publicações femininas de períodos anteriores?
Houve um tempo em que a produção das mulheres era limitada “a pura externalização das afeições, dores e impressões do cotidiano das mulheres”. Evidentemente, não tinha como ser diferente. Elas não possuíam “um teto todo seu”, como bem explicitou Virgínia Woolf. Seu espaço era reduzido à alcova e a cozinha e mesmo assim ocupava-os sempre com a intenção de atender os desejos dos homens. Oprimida, com uma visão do mundo filtrada pelo universo doméstico, não tinha como falar de outra coisa que não fosse o cotidiano feminino e suas dores. Com as conquistas efetuadas pelas lutas das mulheres, houve uma considerável ampliação do seu universo, o que, certamente, alterou sua escrita. Contudo, a mudança não chegou ao ponto em que não se distingue de nenhum modo a produção das mulheres da produção dos homens. Evidentemente, são sujeitos diferentes, assim como entre as mulheres também há diferenças. Não se pode falar de mulher, mas de mulheres, como bem se vê no poema Mulheres tônicas, de Paula Alvim. Não é apenas a condição sexual que diferencia os discursos, mas também o lugar de enunciação que é historicamente determinado. Assim, a língua, a condição social, a cultura, enfim, constroem as diferenças entre os sujeitos. Desse modo, homens e mulheres escrevem diferente, como escrevem diferentes também os homens entre si, as mulheres entre si. Eu não acredito na pretensa universalidade que alguns, desde os clássicos, defendem. Obviamente, o autor espera atingir um amplo número de leitores, mas ele sempre escreverá para um certo público, não tem como despertar interesse em todos. Se alguns somam um número maior de leitores e se tornam canônicos, isso se deve a muitos fatores sobre os quais não cabe uma discussão aqui. Entretanto, não podemos deixar de sublinhar o fato do cânone ocidental excluir as mulheres. A exclusão de muitas escritoras se deu em nome de uma pretensa universalidade. Ora, os valores poéticos ditos universais são, historicamente, elencados por uma elite intelectual, branca, rica, heterossexual e, principalmente, masculina. Sendo assim, o mundo das mulheres, como de negros, pobres, homossexuais, nunca interessou a elite. Evidentemente, não basta pertencer a uma dessas categorias para se dizer que temos um bom poeta, um bom romancista. Contudo, temos que ter muito cuidado para não só julgar como boa produção aquela que reproduz os valores dos grupos sociais que sempre determinaram o que era literatura. Aliás, “o que é literatura?” é uma questão extremamente complicada, impossível de uma definição. Mas uma coisa é certa: não importa se existe um eu lírico feminino, ele pode até existir, mas ele não é uma exclusividade das mulheres. Um homem pode ter uma dicção poética feminina e vice-versa. Em todo caso, a dicção feminina se alterou muito ao longo do tempo. Creio que essa mudança se deve muito ao elemento erótico. Pelo caminho do erotismo, assumindo o desejo e o corpo, negando a interdição sexual, as mulheres surpreenderam a sociedade. Isso se deu de várias maneiras, até mesmo ressignificando a alcova e a cozinha. O doméstico, como em Adélia Prado, passou a ser lugar de criação poética. Impregnado de um erotismo em que a mulher é sujeito do seu desejo, o lar adquiriu novos contornos. Não acho que essas mudanças ocorreram como ruptura, se pensarmos em ruptura como inversão de valores. As mulheres não passaram de uma docilidade para uma agressividade. Não confundiram universalidade com masculinidade, adotando uma forma que as destituíssem de elementos femininos para, desse modo, ter uma escrita considerada universal. As mulheres simplesmente passaram a ter novas experiências e, evidentemente, sua escrita sofreu mudanças. Como essas experiências são, em sua maioria, muito distintas das experiências dos homens, é natural que haja muitas diferenças, o que não quer dizer que exista um modo de falar exclusivamente feminino e outro exclusivamente masculino. Creio que há experiências mais comuns às mulheres e outras mais comuns aos homens, mas nada que seja tão exclusivo de um que não possa ser imaginado pelo outro. Vai depender do quanto sensível é um ou outro na captação do mundo ao seu redor.
3 - Você prefaciou a obra Maria Clara: uniVersos femininos, coletânea que reúne, em capítulos individuais, "12 poetisas" de diversas localidades do Brasil, possuidoras de formações e atuações profissionais várias, cujos trabalhos se expandem na Internet. Conte-nos sobre a experiência de prefaciar este livro, situando, inclusive, o livro Maria Clara no conjunto das discussões teóricas e historio(gráficas) sobre gênero e poesia:
Prefaciar Maria Clara exigiu uma leitura cuidadosa da obra. Evidentemente alguns poemas me chamaram mais atenção do que outros. Aliás, na primeira leitura alguns me atingiram de imediato, outros só foram me prender numa segunda leitura e outros, numa terceira. Entre uma leitura e outra, alguns iam perdendo o posto de preferidos, para depois retomarem seu lugar. Quando li a obra, não procurei teorias que me fundamentassem num juízo crítico. Não sou a favor de classificar uma obra como literária ou não literária, ou de alta literatura ou baixa literatura. Não acredito nestes binarismos porque eles excluem muitas questões que perpassam os estudos sobre o discurso. O que procurei nos poemas foi sonoridade e imagem construindo uma forma que abrigasse um discurso amadurecido. Encontrei isso na maior parte da obra. Pareceu-me que alguns poemas precisariam de um maior tempo de maturação, mas isso é relativo porque, certamente, um outro leitor elegeria estes mesmos poemas como seus preferidos. Afinal, o leitor também é histórica e culturalmente situado. No geral, o que me ficou foi uma sensação de uma obra escrita por mulheres maduras, conscientes de sua condição de mulher e de seu fazer poético. Diante disso, Maria Clara situa-se no contexto atual da escrita das mulheres que discutem questões relacionadas ao corpo, ao desejo, ao amor, ao fazer poético, à condição feminina, à relação com a terra, etc. Nessa escrita, não se percebe o temor de que uma autoria feminina seja identificada. Ao contrário, as mulheres escrevem uma autoescritura, isto é, escrevem “uniVersos femininos”, são testemunhas, superstes, e ao mesmo tempo sobrevivente. Não a testemunha que presenciou, mas a testemunha que viveu os fatos.
4 – Acerca dos valores propriamente estéticos da coletânea, o que consiste Maria Clara: uniVersos femininos? Quais experiências de leitura os leitores poderão obter ao estabelecer contato com a criação das “marias”, considerando a diversidade de motivos e/ou conteúdos, dicções e atmosferas poéticas existentes no livro?
Como já falei, procurei na obra elementos como imagem e sonoridade e não raro os encontrei. O leitor poderá se deliciar com poemas atrevidos, como os "Nina Rizzi", uma das marias mais provocantes, como se pode conferir neste poema:
2 – Falando da produção poética atual, especialmente da poesia feminina. Muitos teóricos da literatura, ao discutir os cânones que distinguem a criação de homens e mulheres, dentre eles a crítica Nelly Novaes Coelho, afirmam que já não se pode vislumbrar, na contemporaneidade, um universo especificamente feminino na poesia elaborada por mulheres. Tendo em vista que a criação atual parece transcender a "poética do silêncio" ou a pura externalização das afeições, dores e impressões do cotidiano das mulheres. Como você reflete a posição do eu-lírico feminino na criação contemporânea? Pode-se dizer que existe eu-lírico feminino? Se existe, quais rupturas e/ou (des)continuidades se podem traçar diante os valores historicamente inscritos/expressos nas publicações femininas de períodos anteriores?
Houve um tempo em que a produção das mulheres era limitada “a pura externalização das afeições, dores e impressões do cotidiano das mulheres”. Evidentemente, não tinha como ser diferente. Elas não possuíam “um teto todo seu”, como bem explicitou Virgínia Woolf. Seu espaço era reduzido à alcova e a cozinha e mesmo assim ocupava-os sempre com a intenção de atender os desejos dos homens. Oprimida, com uma visão do mundo filtrada pelo universo doméstico, não tinha como falar de outra coisa que não fosse o cotidiano feminino e suas dores. Com as conquistas efetuadas pelas lutas das mulheres, houve uma considerável ampliação do seu universo, o que, certamente, alterou sua escrita. Contudo, a mudança não chegou ao ponto em que não se distingue de nenhum modo a produção das mulheres da produção dos homens. Evidentemente, são sujeitos diferentes, assim como entre as mulheres também há diferenças. Não se pode falar de mulher, mas de mulheres, como bem se vê no poema Mulheres tônicas, de Paula Alvim. Não é apenas a condição sexual que diferencia os discursos, mas também o lugar de enunciação que é historicamente determinado. Assim, a língua, a condição social, a cultura, enfim, constroem as diferenças entre os sujeitos. Desse modo, homens e mulheres escrevem diferente, como escrevem diferentes também os homens entre si, as mulheres entre si. Eu não acredito na pretensa universalidade que alguns, desde os clássicos, defendem. Obviamente, o autor espera atingir um amplo número de leitores, mas ele sempre escreverá para um certo público, não tem como despertar interesse em todos. Se alguns somam um número maior de leitores e se tornam canônicos, isso se deve a muitos fatores sobre os quais não cabe uma discussão aqui. Entretanto, não podemos deixar de sublinhar o fato do cânone ocidental excluir as mulheres. A exclusão de muitas escritoras se deu em nome de uma pretensa universalidade. Ora, os valores poéticos ditos universais são, historicamente, elencados por uma elite intelectual, branca, rica, heterossexual e, principalmente, masculina. Sendo assim, o mundo das mulheres, como de negros, pobres, homossexuais, nunca interessou a elite. Evidentemente, não basta pertencer a uma dessas categorias para se dizer que temos um bom poeta, um bom romancista. Contudo, temos que ter muito cuidado para não só julgar como boa produção aquela que reproduz os valores dos grupos sociais que sempre determinaram o que era literatura. Aliás, “o que é literatura?” é uma questão extremamente complicada, impossível de uma definição. Mas uma coisa é certa: não importa se existe um eu lírico feminino, ele pode até existir, mas ele não é uma exclusividade das mulheres. Um homem pode ter uma dicção poética feminina e vice-versa. Em todo caso, a dicção feminina se alterou muito ao longo do tempo. Creio que essa mudança se deve muito ao elemento erótico. Pelo caminho do erotismo, assumindo o desejo e o corpo, negando a interdição sexual, as mulheres surpreenderam a sociedade. Isso se deu de várias maneiras, até mesmo ressignificando a alcova e a cozinha. O doméstico, como em Adélia Prado, passou a ser lugar de criação poética. Impregnado de um erotismo em que a mulher é sujeito do seu desejo, o lar adquiriu novos contornos. Não acho que essas mudanças ocorreram como ruptura, se pensarmos em ruptura como inversão de valores. As mulheres não passaram de uma docilidade para uma agressividade. Não confundiram universalidade com masculinidade, adotando uma forma que as destituíssem de elementos femininos para, desse modo, ter uma escrita considerada universal. As mulheres simplesmente passaram a ter novas experiências e, evidentemente, sua escrita sofreu mudanças. Como essas experiências são, em sua maioria, muito distintas das experiências dos homens, é natural que haja muitas diferenças, o que não quer dizer que exista um modo de falar exclusivamente feminino e outro exclusivamente masculino. Creio que há experiências mais comuns às mulheres e outras mais comuns aos homens, mas nada que seja tão exclusivo de um que não possa ser imaginado pelo outro. Vai depender do quanto sensível é um ou outro na captação do mundo ao seu redor.
3 - Você prefaciou a obra Maria Clara: uniVersos femininos, coletânea que reúne, em capítulos individuais, "12 poetisas" de diversas localidades do Brasil, possuidoras de formações e atuações profissionais várias, cujos trabalhos se expandem na Internet. Conte-nos sobre a experiência de prefaciar este livro, situando, inclusive, o livro Maria Clara no conjunto das discussões teóricas e historio(gráficas) sobre gênero e poesia:
Prefaciar Maria Clara exigiu uma leitura cuidadosa da obra. Evidentemente alguns poemas me chamaram mais atenção do que outros. Aliás, na primeira leitura alguns me atingiram de imediato, outros só foram me prender numa segunda leitura e outros, numa terceira. Entre uma leitura e outra, alguns iam perdendo o posto de preferidos, para depois retomarem seu lugar. Quando li a obra, não procurei teorias que me fundamentassem num juízo crítico. Não sou a favor de classificar uma obra como literária ou não literária, ou de alta literatura ou baixa literatura. Não acredito nestes binarismos porque eles excluem muitas questões que perpassam os estudos sobre o discurso. O que procurei nos poemas foi sonoridade e imagem construindo uma forma que abrigasse um discurso amadurecido. Encontrei isso na maior parte da obra. Pareceu-me que alguns poemas precisariam de um maior tempo de maturação, mas isso é relativo porque, certamente, um outro leitor elegeria estes mesmos poemas como seus preferidos. Afinal, o leitor também é histórica e culturalmente situado. No geral, o que me ficou foi uma sensação de uma obra escrita por mulheres maduras, conscientes de sua condição de mulher e de seu fazer poético. Diante disso, Maria Clara situa-se no contexto atual da escrita das mulheres que discutem questões relacionadas ao corpo, ao desejo, ao amor, ao fazer poético, à condição feminina, à relação com a terra, etc. Nessa escrita, não se percebe o temor de que uma autoria feminina seja identificada. Ao contrário, as mulheres escrevem uma autoescritura, isto é, escrevem “uniVersos femininos”, são testemunhas, superstes, e ao mesmo tempo sobrevivente. Não a testemunha que presenciou, mas a testemunha que viveu os fatos.
4 – Acerca dos valores propriamente estéticos da coletânea, o que consiste Maria Clara: uniVersos femininos? Quais experiências de leitura os leitores poderão obter ao estabelecer contato com a criação das “marias”, considerando a diversidade de motivos e/ou conteúdos, dicções e atmosferas poéticas existentes no livro?
Como já falei, procurei na obra elementos como imagem e sonoridade e não raro os encontrei. O leitor poderá se deliciar com poemas atrevidos, como os "Nina Rizzi", uma das marias mais provocantes, como se pode conferir neste poema:
Invenção
no festival de cinema finalmente
encontrei o meu amor.
corria louco atrás da moça pelada
e gritava:
“vejam como é gostosa a minha mulher”,
“vejam como é linda a minha menina”.
e do outro lado alguém também me gritava:
“nina, nina, nina
tá passando carne em transe,
tá passando carne em transe!”
foi a minha vez de correr à cama de nos ver à tela.
era um filme aventuresco, poético, psicológico, mítico.
uma obra-prima que de ser feliz subiam os créditos:
“salvem os quartos de cinema!”
Em outros poemas, o sujeito lírico sai de si e observa o desmoronamento do mundo, como este de "Adriana Godoy", que se constrói na bela imagem do último urso branco:
Era primavera
o último urso branco saiu do estado hibernal
e caminhou lentamente na árida e fria paisagem
abriu seus braços enormes
resmungou sonetos ancestrais
abraçou-se à própria sorte
escancarou seus dentes afiados inúteis
abriu caminhos tortuosos insólitos
mergulhou no lago negro gelado
não viu rastros de homens
nem peixes nem focas nem canibais
viu algas mortas pardos areais
o último urso branco hibernou
e era primavera
5 – Cite-nos passagens do livro que tenham lhe surpreendido e/ou que revelem a que as “marias” se propuseram, poeticamente, realizar na publicação:
O livro surpreende logo pela qualidade da edição, que está muito bem cuidada. Surpreende também a diversidade das vozes femininas. A diferente formação das autoras compõe um mosaico rico em experiências de vida e, portanto, maneiras de escrever variadas que no conjunto apontam para um olhar maduro da poesia e da vida. Citar passagens me parece a coisa mais difícil de fazer. Até tentei, reli o livro inteiro, selecionei muitas, eram demais para incluir aqui. Depois tentei deixar um ou dois versos por autora, mas achei injusto porque tem autoras que tem muitos versos surpreendentes e escolher um é quase impossível, mesmo assim fiz uma seleta para atender a solicitação. Deixei de fora Adriana Godoy e Nina Rizzi porque já as apresentei na questão anterior. Em todo caso, as vozes poéticas reunidas em Maria Clara revelam uma consciência muito firme da condição feminina. E o bom é que isso se dá em versos repletos de poesia, isto é, o conteúdo se apresenta, repetidas vezes, numa forma cuidadosamente elaborada. Acho que é o que se pode conferir em versos como os exemplificados nos fragmentos abaixo:
O livro surpreende logo pela qualidade da edição, que está muito bem cuidada. Surpreende também a diversidade das vozes femininas. A diferente formação das autoras compõe um mosaico rico em experiências de vida e, portanto, maneiras de escrever variadas que no conjunto apontam para um olhar maduro da poesia e da vida. Citar passagens me parece a coisa mais difícil de fazer. Até tentei, reli o livro inteiro, selecionei muitas, eram demais para incluir aqui. Depois tentei deixar um ou dois versos por autora, mas achei injusto porque tem autoras que tem muitos versos surpreendentes e escolher um é quase impossível, mesmo assim fiz uma seleta para atender a solicitação. Deixei de fora Adriana Godoy e Nina Rizzi porque já as apresentei na questão anterior. Em todo caso, as vozes poéticas reunidas em Maria Clara revelam uma consciência muito firme da condição feminina. E o bom é que isso se dá em versos repletos de poesia, isto é, o conteúdo se apresenta, repetidas vezes, numa forma cuidadosamente elaborada. Acho que é o que se pode conferir em versos como os exemplificados nos fragmentos abaixo:
Escreve poemas como quem
come as pernas.
(Adriana Riess karnal)
Isso tudo porque esse mar é vagabundo...
(Hercília Fernandes)
(Hercília Fernandes)
Pouco se viu dela
Pois esparramada
Tipo mole, argilosa
Ela se fundiu
À rocha.
(Lara Amaral)
em meu apogeu
sobriamente desfeita
quando a realidade bafeja.
(Lou Vilela)
sobriamente desfeita
quando a realidade bafeja.
(Lou Vilela)
Teresa não-me-toques
torce o terço:
tanto tato, tanto tino,
tanta trava...
ô tristeza!
(Maria Paula Alvim)
E segue em passos apressados
tentando antecipar a reta concisa
para decerto converter em óleo.
(Mirze Souza)
tentando antecipar a reta concisa
para decerto converter em óleo.
(Mirze Souza)
Entre o fogo e a água,
sempre fui a brisa.
(Renata Aragão)
que a conduta optasse
oposta - mente
entre
frio - quente
- só assim evitaria a náusea
(Talita Prates)
oposta - mente
entre
frio - quente
- só assim evitaria a náusea
(Talita Prates)
partiu com dores de parto
mas partiu
drapeja ébria
entre as flores
(Úrsula Avner)
Sou vidro
Sou cristal
Sou copo
Sou taça
Sou de todas as cores
Quando tua luz me trespassa
(Wania Victoria)
Sou cristal
Sou copo
Sou taça
Sou de todas as cores
Quando tua luz me trespassa
(Wania Victoria)
6 – Para finalizar, como você concebe a criação poética veiculada na internet? Você lê poemas em blogs e sites de relacionamentos?
A internet é o melhor expositor que se pode ter. Não existe um modo mais eficaz de se fazer circular idéias, sentimentos, emoções entre um grande número de pessoas. Quando se trata de conhecimento científico é uma maravilha porque podemos ter acesso rapidamente às pesquisas mais recentes. Quando se trata de poesia, podemos conhecer uma variedade muito grande de estilos e ter a palavra enriquecida com tonalidades que intensificam a emoção poética. Eu confesso que leio pouco diante da imensidão que o mundo virtual me oferece, mas o suficiente para reconhecer que a internet é a democratização da leitura poética, podendo contribuir com a formação leitora de muitos jovens que não se sentem atraídos pelo livro, mas são familiarizados com a tela do computador.
PRODUÇÕES ACADÊMICAS DE ANA SANTANA
- A nação guesa de Sousândrade: uma narrativa em viagem, livro publicado em 2008, pela Academia Maranhense de Letras, Fundação Sousândrade e Universidade Estadual do Maranhão. Resultado da tese de doutorado em Literatura Comparada, a obra consiste na leitura e análise, realizadas no deslocamento entre arquivo e repertório, do poema O Guesa, de Joaquim de Souza Andradre, poeta maranhense do século XIX. A tese caminha no sentido de demonstrar como Sousândrade, numa visão bem contemporânea às narrativas da nação moderna do século XX, elabora uma performance alegórica na forma de uma poética da serpente, animal totem e mitológico.
- Adélia Prado e a poética do falanjo, livro publicado pela editora Ideia em 2009. O texto é resultado da dissertação de mestrado em Literatura Comparada pela UFRN e segue o conceito do falanjo para analisar a obra poética de Adélia Prado, tendo a poesia de Carlos Drummond de Andrade como paradigma de leitura. O falanjo é um conceito da psicanálise que remete a um terceiro gênero, nem masculino, nem feminino. É o gênero do poeta e do anjo, aquele que não aceita os lugares determinados, antes prefere o trânsito livre.
- Cadernos de formação docente: organizado em parceria com Tereza Câmara e Neide Maciel. O livro reúne artigos das organizadoras e de outros professores abordando questões do ensino e da formação de professores.
SELETA DE POEMAS
- Do livro Danaides (2005, p. 30):
Crisálida
Aprendi tarde
a dispensar conselhos de druidas
a velejar barcos sem vela
a substituir com signos
a incompletude da espera.
Metano, sou chama pálida.
Aprendi tarde
a dispensar conselhos de druidas
a velejar barcos sem vela
a substituir com signos
a incompletude da espera.
Metano, sou chama pálida.
Maturação de fósseis ilhados.
Buril lavrando em pedra o devenir...
Recolho as bainhas das saias,
guardo nelas o tropel das madrugadas em claro
e as migalhas desprezadas pelas gralhas.
Enquanto macero rosas no álcool,
promessas navegam em folhas de Buriti.
Buril lavrando em pedra o devenir...
Recolho as bainhas das saias,
guardo nelas o tropel das madrugadas em claro
e as migalhas desprezadas pelas gralhas.
Enquanto macero rosas no álcool,
promessas navegam em folhas de Buriti.
- Do livro Em nome da pele (2008, p. 66):
Estrambólico
Isso de misturar
azeite, mel e mostarda.
enfeite, pedra e palavra
Isso de escrever
Isso de fazer salada
Isso de banho e tosa
tudo invenção nossa
Um modo de fazer crível
a viagem no quarto
a bonança na tempestade
e a liberdade no vício.
Isso de escrever
Isso de fazer salada
Isso de banho e tosa
tudo invenção nossa
Um modo de fazer crível
a viagem no quarto
a bonança na tempestade
e a liberdade no vício.
- Dos carnês do IPTU de Natal, ano 2009:
No canto do Mangue
uma rede alaranjada
pesca o coração dos homens
brando como o sol que se cala.
Ana de Santana
*Entrevista realizada por Hercília Fernandes, em outubro de 2010, a Ana Santana Souza (ou Ana de Santana), prefaciadora da obra Maria Clara: uniVersos femininos (LivroPronto Editora: 2010).