sábado, 10 de março de 2012

Deter a Primavera?... Jamais!





Em dedicatória:  

à minha Mãe e às minhas Irmãs,
às Mestras e às Discentes de Pedagogia (CFP/UFCG),
às Mestras da UFRN,
em especial à profª. Drª. Marta Maria de Araújo,
e às Poetisas e Escritoras da Blogosfera.
 

Antes de iniciarmos as discussões em torno do objeto de nossa investigação, neste encontro de aula, eu não poderia deixar de realizar, enquanto mulher, mãe e educadora, algumas considerações ao dia 8 de março, Dia Internacional das 'Mulheres'.
As palavras as quais me inquietam tecer partem, inicialmente, do pressuposto de que se hoje estamos aqui reunidas, propondo-nos à reflexão e à construção de saberes e práticas teórica e metodologicamente orientadas ao ensino de Geografia nos anos iniciais, essa realidade se deve, em grande medida, às heranças socioculturais vindas de outros tempos e espaços, que nos apontam à compreensão do presente e à reinvenção do futuro.
Assim, antes de o 8 de março constituir um dia voltado às felicitações e às ofertas de presentes às mulheres, faz-se necessário lembrar que a data, acima de tudo, configura, simbolicamente, as ações femininas em prol da liberdade e do empoderamento humano e intelectual das mulheres. Ações que possibilitaram maior inserção e participação desses sujeitos nas esferas públicas da sociedade. A data, nessa direção de entendimento, faz emergir as sombras e as luzes de uma recentidade histórica, consiste “data-símbolo” à recordação das submissões e represálias as quais as mulheres foram, historicamente, submetidas; mas, igualmente, à recordação dos embates e reivindicações por direitos, bem como das conquistas e transgressões a valores, normas e paradigmas ideológica e socialmente instituídos, cujas ressonâncias inspiram-nos e remetem-nos às transformações.
Igualmente, não tão somente pela rememoração à trágica ação reacionária imposta às mulheres operárias, nos EUA, em 1857, que ocasionara a morte de aproximadamente 130 mulheres quando, em movimento grevista, as tecelãs requeriam condições mais justas de trabalho, além de valorização salarial. Muito embora este acontecimento, até pela barbárie da ação e repercussões posteriores, constitua, da mesma forma, símbolo para refletirmos as condições atuais das mulheres na sociedade contemporânea.
Por longos anos, as mulheres ocidentais foram anuladas enquanto sujeitos, tendo suas especificidades falseadas por concepções abstratas e sobrenaturais, que contribuíram para disseminar visões distorcidas do feminino atreladas às faculdades biológicas das mulheres, especialmente em relação à maternidade. Ideias que se legitimaram no todo social e que, reproduzidas, de formas estruturalmente orquestradas, principalmente por meio da família, igreja e escola, no dizer de Bourdieu, contribuíram para consolidar a dominação masculina sobre o suposto “sexo frágil” ou “segundo sexo”, segundo Simone de Beauvoir.
Posteriormente, com a revolução industrial e grandes guerras, as mulheres são convocadas às esferas públicas, especialmente ao trabalho nas fábricas e nas escolas. Todavia, se por um lado, as mulheres passaram a exercer funções produtivas na sociedade, estabelecendo relações além dos limites do privado. De outro, essa participação fora marcada por ideologias que minimizavam as suas reais condições de profissionalismo. Às mulheres, bem como às crianças, não se faziam necessários altos salários para garantir-lhes a sobrevivência, tendo em vista que se encontravam, na organização societária conservadora, sob a proteção masculina. Essas atividades, mediante discurso circundante, deveriam ser concebidas como complementares, já que constituía responsabilidade dos homens, pais ou maridos, o provimento familiar.
Em relação à atividade docente, objeto de nossas mediações cognoscentes, a difusão dessas ideias, em geral amparada por teorias explicativas cuidadosamente formuladas, caracterizou o fenômeno que, na literatura especializada, costuma-se definir como “feminização do magistério”. Isso porque, dos fins do século XIX ao início do século XX, para se efetivar o projeto de modernidade social e modernização da economia, as nações ocidentais compreenderam que era preciso investir, indistintamente, na escolarização das gerações que ocupariam funções no mercado de trabalho, sobretudo no setor industrial em crescente desenvolvimento. Entretanto, como nem todas as nações disponham de recursos materiais para garantir a plena expansão do ensino, as mulheres, então concebidas pelo pensamento filosófico como possuidoras de qualidades divinas para educar as crianças, constituíam os sujeitos ideais, conforme discurso liberal, para encabeçar o movimento de expansão da escola.
Essas ideias justificavam-se à luz da sensibilidade maternal feminina para com os infantes no âmbito da domesticidade, que, consistindo uma atividade espontânea, deveria ser extensiva, também, às práticas de ensino formais. Sendo a escola extensão natural do lar e da família, bastaria às mulheres professoras a expansão do amor que, naturalmente, experimentavam nas relações afetivas cotidianas. A docência, nessa perspectiva, fora entendida enquanto “missão sagrada”, um ato de “doação”, de desprendimento individual em prol da coletividade, especialmente em favorecimento daqueles que necessitavam dispor dos instrumentos de racionalização para saírem da condição de miséria e atraso sociocultural dos quais se encontravam submersos e submetiam às nações subdesenvolvidas.
Porém, se a formação feminina, sobretudo nos cursos direcionados à profissão docente, fora marcada por falseamentos e inversões da realidade histórica, a inserção das mulheres nos processos formais de racionalização, por outro lado, possibilitou-lhes, por intermédio da leitura e das práticas sistemáticas de escrita, os primeiros exercícios de reflexão filosófica, que contribuíram, posteriormente, à identificação das problemáticas sociais existentes, principalmente no reconhecimento das singularidades que permeiam os universos de vidas femininos.
Nesse sentido, lembremos o nome de algumas mulheres, cujas atuações nas esferas públicas da sociedade levam-nos a indagar a legitimidade dos discursos e da ordem dominante socialmente instituída. Como, por exemplo, o nome da escritora potiguar Nísia Floresta que, ainda no século XIX, advertira sobre as contradições existentes no ideário político predominante, bem como nas instituições que o legitimavam, acenando para a emergência do saber para a promoção da participação feminina nas decisões políticas brasileiras no entre-séculos: “Por que a ciência nos é inútil? Porque somos excluídas dos encargos públicos. E por que somos excluídas dos cargos públicos? Porque não temos ciência”. Provoca-nos a escritora.
Rememoremos o nome da filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), que fizera da reflexão filosófica e do exercício de escrita instrumentos de resistência, engajamento político e quebra de paradigmas hegemônicos, denunciando, por meio de suas ações e vasta produção bibliográfica, que as diferenças entre os sexos não consistiam realidades predeterminadas pelas particularidades biológicas, mas, acima de tudo, constituíam-se pelas intervenções históricas dos sujeitos, que delimitavam diferentes papéis sociais aos homens e às mulheres, estabelecendo assim as relações de poder entre gêneros.
Recordemos o nome da poetisa e educadora brasileira Cecília Meireles (1901-1964) que, em anos de repressão impostos pelo Estado Novo, sobretudo na década de 1930, fizera da escritura jornalística instrumento de transformação social. E, mais recentemente, de autoras como Adélia Prado, Lya Luft, Hilda Hilst e tantas outras autoras contemporâneas, cujas escrituras literárias e poéticas remetem-nos a refletir a repressão secular, as estruturas patriarcais de poder e as condições de existência das mulheres.
Pensemos, aqui e agora, na nossa primeira presidenta Dilma Rousseff que, corajosamente, desafiara o autoritarismo da ditadura e, mesmo com as recordações das violências físicas e simbólicas sofridas, não se deixara abater pelas forças opressoras e hoje ocupa o posto mais elevado na política brasileira.
Mas lembremos, igualmente, de uma soma considerável de mulheres que, estando à margem dos espaços políticos, culturais e socioeducativos convencionais, não ocupam as páginas de notícias, mas todos os dias se vêem quebrar e se reconstruírem em suas práticas cotidianas. As mulheres que sofreram e sofrem abusos físicos e sexuais, que não tiveram ou não têm acesso à informação e ao conhecimento formal, nem a formas favoráveis de empoderamento sociocultural e, portanto, ao pleno exercício da liberdade e da autonomia enquanto sujeitos, muito embora mesmo em situações adversas possam encontrar mecanismos de resistência e vislumbrar, em suas microcotidianidades, maneiras de “driblar”, ainda que elementarmente, formas arbitrárias de poder.
Lembremos de nossas Avós e Mães que, em períodos anteriores, tiveram o direito negado à escolarização e ao conhecimento elaborado e, por essa razão, incentivam-nos à formação humana e acadêmica como condição a priori para garantir-nos o exercício da cidadania.
Igualmente, pensemos em Nós - mulheres, mães, esposas, amantes, pedagogas -, que assumimos “diuturnamente” uma multiplicidade de funções e, mesmo assim, não perdemos a capacidade de sonhar e de nos regozijar com o belo, de vislumbrar objetivos, fazer planejamentos, sistematizar as nossas ações por meio de buscas e caminhos cada vez mais sólidos de amadurecimento humano e intelectual.
Pensemos, também, em nossos filhos e filhas, em nossos educandos e educandas, cuja configuração e reinvenção do futuro relacionam-se às ações coerentes por nós, sujeitos históricos, empreendidas nas diversas problemáticas que requerem soluções na contemporaneidade.
Não nos esqueçamos, portanto, de exercer a nossa historicidade, reconhecendo aquilo que é universal e, simultaneamente, particular às nossas vidas tão semelhantes e tão distintas. Porém, não nos esqueçamos, também, de cultivar as nossas sensibilidades, de darmos abertura às diversas formas de expressão, linguagens e culturas, pois que nos arranquem uma, duas, três rosas, mas que jamais nos permitamos deter a Primavera que, em nós, habita-nos.



Hercília Maria Fernandes
(Professora Doutoranda em Educação UFCG/UFRN)




Notas:

[1] Aula proferida em 08 de março de 2012, na disciplina “Fundamentos e Metodologias do Ensino de Geografia”, do curso de Pedagogia, do Centro de Formação de Professores, da Universidade Federal de Campina Grande (CFP/UFCG). E hoje, 09 de março, ampliada em escrita mediante as discussões desenvolvidas com a turma, que apresenta-se, basicamente, composta por discentes mulheres.
[2] Algumas das considerações historiográficas realizadas nesta explanação consistem construções teóricas, então refletidas, pertinentes ao artigo “Voz Poética Feminina na Era Blog: Os Casos da Maria Clara”, a ser publicado no dossiê “Literatura Contemporânea: escritura e resistência”, da Revista Línguas & Letras (Unioste/Campus de Cascavel). No texto realiza-se uma historiografia da participação feminina na literatura para se inserir, posteriormente, as vozes das autoras contemporâneas no cerne das discussões sobre gênero e poesia. Porém, registra-se que a apresentação do Dossiê, bem como o Resumo do artigo, já se encontra disponível para consulta no site do periódico.

6 comentários:

  1. Hercília,



    Que maravilha é esta? Vou arquivar e imprimar, pois fiquei impressionada, não só com seu texto/aula, mas com Nisia. Quem dera a luta das mulheres continuassem nesse âmbito intelectual.

    Não basta 'maria da penha" e mulheres vampirescas que se propõem a ajudar na luta contra a mulher oprimida. Com intelectualidade, elas vencerrão e sempre abrirão mais primaveras inteiras.



    Muito obrigada em compartilhar comigo.



    Beijos



    Mirze

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    1. Mirze,

      a Lei Maria da Penha constitui um marco, um divisor de águas, no judiciário brasileiro.

      Maria da Penha, vítima de inúmeras violências domésticas, tem sido uma dessas mulheres guerreiras que não se permite quebrar.

      Ótima a sua chegada, um dia escreverei sobre esta mulher que tanto contribuíra para derrubada de paradigmas que legitimavam a violência nos lares.

      Beijos e obrigada,
      hfernandes.

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  2. Hercília, gostei imenso de ler o seu texto e da reflexão que faz sobre as razões por que se comemora o dia internacional da Mulher. Todos sabemos que ainda hoje a discriminação existe, muitas vezes directamente ouras vezes de forma indirecta. Já para não falar da violência a que tantas mulheres estão sujeitas por esse mundo fora. Obrigada amiga por nos fazer pensar em tudo isso. Um beijo.

    P.S. Ainda este ano sairá um original meu aí no Brasil. Depois direi para que as pessoas que gostam do que eu escrevo o adquiram.

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    1. Graça, querida poetisa portuguesa.

      As violências ainda são muitas, é uma recentidade histórica as mulheres puderem manifestar certas sombras que permeiam o cotidiano.

      Ontem assisti a um filme, "Dias e Noites", que tratava disso. No caso brasileiro, sendo as mulheres consideradas propriedade dos maridos, as leis favoreciam a expansão da violência.

      Ainda bem que as coisas têm mudado no judiciário, mas se considerarmos que o mercado capitalista ainda se apropria do que se considera por "feminino" para provocar o consumo de produtos, vemos que em termos de mentalidade o fenômeno de certa forma se perpetua...

      Alegra-me imensamente as suas palavras e, especialmente, a boa notícia da sua publicação no Brasil.

      O livro será um sucesso, não tenho dúvidas. Sua poesia é muito rica e bela. É uma honra que chegue em material impresso até nós!

      Beijos com carinho,
      hfernandes.

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  3. Concordo com o que diz, Hercília.
    Obrigada pelas suas palavras.
    Não estou no facebook porque não tenho tempo.
    Um beijo.

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    1. Graça,
      avise-me quando o livro estiver disponível para aquisições.
      Terei imenso prazer em divulgá-lo aqui e em outros espaços, incluindo o Facebook.
      Um beijo,
      hfernandes.

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